A literatura é um termo guarda-chuva que abarca as mais diversas práticas de escrita. Às vezes, é possível encontrar mais e melhor literatura em obras de jardinagem ou de culinária do que em alguns romances. A literatura não é a ficção, mas a imaginação e o estilo. Nos livros chamados práticos, destinados a transmitir um saber técnico, a literatura, quando está presente, seria o que leva a perder tempo, o desvio, o digressivo. Ela seria a boa resposta à má pergunta: por que complicar o que pode ser simples? Justamente, a arte nunca é simples; nisso, ela está mais próxima da vida do que as aproximações funcionais. O preconceito realista segundo o qual a verdadeira vida consiste em manter os pés na terra, isto é, em privilegiar a parte sólida e animal que vive em nós, é uma redução grosseira, que ignora o que faz o valor e o encanto da existência. De minha parte, sempre acreditei que a vida valia sobretudo por seus momentos de escrita, pois é aí que, inteiramente entregue a mim mesmo, me dou o direito de exprimir o que quero, dentro daquilo que posso, mas do melhor modo que eu possa. Se fixarmos nossa atenção por um instante sobre essa atividade solitária que nos isola dos outros para melhor nos unir a eles nos respeito a nossas liberdades recíprocas, escrever surge como um dos modos mais excitantes de se exercitar para pensar e viver sem dever nada a ninguém, exceto o reconhecimento aos escritores cujos livros nos transmitiram a paixão de criar por nossa vez, e o reconhecimento antecipado aos futuros leitores.
Na utopia com a qual costumo sonhar, todo mundo escreveria e leria. Um silêncio carregado de pensamentos trocados relegaria as falações supérfluas às margens da existência. A concentração mental tomaria o lugar das tonitruâncias do verbo não-dominado. As falas seriam mais raras, porém mais bem ajustadas. Elas ressoariam com uma vitalidade e uma sinceridade que geralmente não se vêem no ruído universal da jactância midiática. Econômico em discursos, o humano se reaproximaria da natureza, segundo a intenção de Rousseau. O chumbo da linguagem valeria tanto quanto o ouro do silêncio. Se fizesse isso, o mundo talvez viesse a se parecer um pouco mais com uma assembleia de velhos sábios unidos pelo amor aos livros. Talvez faltasse a tensão vital de uma resistência que o mundo real provoca entre aqueles que têm dificuldade em suportar as crueldades, as cegueiras e os absurdos. Como escrever sem nunca correr o risco de ser ferido? Se tudo corresse por conta, só restaria fazer literatura. Mas como nada corre por conta, a não ser aquilo que se encaminha para a própria perda, e rapidamente nos tempos que correm - quero falar de formas mais civilizadas de intercâmbio - a escrita obstinada, que força a refletir, segue sendo uma das armas mais eficazes contra a selvageria. Cada um com seus próprio meios pode facilmente se apoderar dela.
Georges Picard
Tradução de Marcos M.