Conferência proferida na École des Libres Études
PREFÁCIO
Se há uma questão vital entre todas, é aquela da religião. Elevada e profunda, ela engloba as vidas, tanto dos indivíduos como das nações. Ela não se manifesta em toda circunstância, mas, com alguma perspicácia, não deixamos de descobri-la.
Entre ela e a ciência engajou-se uma luta que ainda perdura; luta inflexível, mas na maioria das vezes subterrânea e silenciosa. Ter-se-ia podido crer no triunfo da ciência como definitivo quando se reconheceu que o sol não gira ao redor da terra, quando a escola aceitou o sistema de Newton, que Galileu e Copérnico haviam precedido e que seria seguido por Laplace. Mas Newton, ele próprio, retomou a pena dos Principia para escrever um comentário sobre o Apocalipse, dissertar sobre o Milênio e o número da Besta!
Inútil explicar aqui como as nações da Europa fazem política, seja católica, seja protestante ou ortodoxa; nem demonstrar que nesta nação as lutas políticas têm seu ponto de partida na ideia religiosa, e que os diferentes partidos classificam-se segundo suas afinidades - são clericais ou anticlericais. Não seria nem o local nem o momento para aprofundar como a república vizinha, após ter exclamado com o Tribuno de Belleville: "O clericalismo é o inimigo", retomou as antigas tradições católicas no exterior, para em seguida governar no interior com o apoio e a alta aprovação do pontífice tendo assento no Vaticano. Os vaivéns da política contemporânea não são absolutamente nosso tema. Mas se tivéssemos tempo, agradar-nos-ia estudar convosco como a Bélgica católica separou-se outrora da Holanda protestante. Como as dissensões religiosas arruinaram Flandres, despovoaram-na em proveito dos Países Baixos vizinhos, os quais se tornaram a potência calvinista por excelência. Como a Alemanha quase morreu por sua Reforma. Como a guerra dos albigenses matou a civilização nascente do sul da França, civilização que teria dado à Europa um centro de gravidade diferente do atual. E a luta na Espanha entre os mouros e os cristão; e a cristandade inteira armando-se para esmagar o Islã e arrancar-lhe o Santo Sepulcro!... Basta, ou então seria necessário refazer a história inteira da Europa e aquela das outras partes do mundo.
Inútil resistir. Reflexão feita, ninguém contestará a asserção de que o pensamento religioso impulsiona os povos e as nações. Não fosse essa chave do mistério, a história seria um indecifrável enigma, a coreia de nações dementes, o grande baile na Salpetrière.
I
Conhecer a razão do que é a razão da história, apreender a ideia-mestra, motivo secreto dos acontecimentos, surpreender a causa das agitações humanas no transcurso dos séculos, como conseguiremos isso?
Surge uma objeção prévia: as religiões sustentam que elas não podem ser julgadas pela razão, à qual todas dizem-se incomensuravelmente superiores. Cada uma apresenta-se com um diadema marcado Alfa e Ômega. "Eu sou o Mistério", dizem elas, "sou o princípio e o fim; nenhuma mão retirará os véus que me velam. O ser débil que nasce, vive e morre no tempo não poderia, sem perecer, pensar um pensamento de eternidade. Fracos mortais que vós sois, tencionáveis dialogar com o relâmpago! É o que já se dizia em Tebas no mito de Sêmele, de Sêmele fulminada por ter desejado ver Júpiter de outra forma que sob o disfarce de um mortal!
- Perfeito. Consideremos o raciocínio como irrefutável. Todavia, visto que a compreensão do mistério é-nos proibida, porquanto não podemos senão divagar em relação às coisas que extrapolam nossa competência, consideremo-lo como dito. Cessemos de pensar nisso e, inclusive, de preocuparmo-nos com isso. Se chegarmos a viver na eternidade, então, e só então, nós nos ocuparemos das coisas que estão para além do tempo.
Assim falam os Agnósticos, um grupo no qual brilham sábios naturalistas, ingleses em sua maioria, emanados de uma nação prática e robusta.
- Mas como poderíeis imaginar, os religiosos acolheram essa declaração com mau humor; eles não querem ouvir falar dela, afirmam que ela sapa as bases de toda religião...
- "Esses Agnósticos", dizem, suprimem-nos pretextando ignorar-nos. Para não ter de responder-nos, eles tapam os ouvidos. Mui respeitosamente, e a pretexto de que o reino de deus não é deste mundo, colocam-nos fora do mundo, fora da inteligência, fora da humanidade, encerram-nos numa cela de loucos, sob a alegação de que não poderíamos estar mais bem alojados para a contemplação dos segredos insondáveis!"
Quem, pois, imaginou o mito de Sêmele, senão filósofos do terra a terra, cujo gênio recusava-se às altas especulações, ao voo ao empíreo! Todavia, contrariamente ao que dizem Aristóteles, os aristotélicos e outros adeptos do medíocre bom senso, as ciências só valem pela quantidade de mistérios que elas detêm. Todos os nossos conhecimentos, tantos e quantos, não têm outra virtude senão aquela de fazer-nos suspeitar da incognoscível verdade. O enigma proposto ao homem é insolúvel, é verdade, - a quem o dizeis? - mas importa que nós discutemo-lo para perscrutar suas profundezas. Nos degraus do santuário vela a Esfinge; à porta ela mantém-se sentada; ninguém entrará no templo da eternidade sem sentir suas garras aceradas rasgar-lhe as carnes e penetrar até ao coração!
Aqueles que falam assim são os heróicos, os ardentes.
Sem ir tão longe em sua fé, a maior parte dos doutores cristãos - por enquanto não temos outros doutores a consultar - permite o exame de seus mistérios e, inclusive, iniciam-no de bom grado, mas após instrução recebida e ter passado por provas. O mistério, dizem eles, mistérios porque mistério, fez objeto de uma revelação.
Partindo dessa revelação, não há predicador que não demonstre a seus fiéis o "mistério da redenção", não há vigário que não explique a seus jovens catecúmenos de ambos os sexos o que ele chama de "plano de deus". Ao mesmo tempo ele faz, tanto quanto possível, apelo à inteligência e à compreensão; explica, portanto, discute. Ele conta que o mistério foi deliberadamente instituído para tentar o homem ao qual basta dizer: "Eis um mistério" para que ele ponha-se a adivinhá-lo, para que o vire e revire, para que seu olhar perscrute o exterior, a fim de adivinhar, se possível, seu interior. - O que diz a lenda bíblica? - Depois de ter tirado o mundo do nada, o criador pôs o homem em um jardim de delícias. - Desfrutai, disse ao pai e à mãe do gênero humano, desfrutai de tudo o que vos cerca. Todavia, como exceção única, não tentai saber o porquê nem o como!" E como basta dar uma ordem para provocar a desobediência, Adão e Eva quiseram de imediato experimentar a nova sensação: fizeram-no, mas para ser expulsos do Paraíso... Credes, segundo dizem, que essa desobediência não fora prevista pelo onisciente criador? - "Oh, bem-aventurado pecado!", exclama um pai da igreja. Pecado fatal e fecundo que valeu ao homem a consciência e a liberdade!
Ouviríamos com prazer essa linguagem se não lembrássemos que a "feliz falta", assim nomeada, seria mais tarde qualificada de pecado original, e condenaria aos suplícios do eterno inferno a maior parte da espécie humana!
- Basta! A causa da livre investigação foi ouvida, e não era em relação a vós que havia obrigação de justificá-la. Por sinal, não hesitamos em reconhecer que o homem apraz-se a fazer-se questionamentos que extrapolam seu saber e, inclusive, sua inteligência. Essa impossibilidade faz sua miséria em relação aos outros animais, mas também seu privilégio; sustentou-se até mesmo que ela faz sua grandeza, se grandeza há, e se a palavra grandeza não é ridícula, quando se fala de infinito. De todo modo, não há valoroso coração que não aprove as palavras do poeta: Malo periculosam libertatem! Apraz-me que a liberdade tem seus perigos!
II
Em matéria religiosa, uma suspeita de leviandade desqualificar-nos-ia, uma sombra de presunção colocar-nos-ia no erro. Não esqueçamos que vós e eu somos só indivíduos. Qualquer um desses indivíduos que se arrogue o direito de citar as religiões deve comparecer ao tribunal de sua consciência! Um particular, ele sozinho, a seu bel-prazer e sem apelo, julgará uma crença professada por alguns milhões de homens! Sobre uma doutrina que persistiu durante séculos pronunciaremos nossa sentença em algumas horas, talvez em alguns minutos, esquecendo que ela foi objeto de longas, longas meditações de espíritos sinceros, de profundos pensadores, e, inclusive, de gênios! Quando tivermos bem refletido sobre isso, com que sinceridade, com que modéstia - não, com que humildade - pronunciaremos nossos juízos!
Sem dúvida abordaremos esse estudo com a firme resolução de buscar, não a demonstração de qualquer ideia preconcebida, mas a verdade, nada além da verdade. Quem embarcasse com parti pris na viagem, só veria seu parti pris.
E seria um grave erro crer que basta a boa vontade para libertar-se do parti pris. O parti pris é nossa própria maneira de pensar, é a modalidade segundo a qual funciona nosso juízo, é nossa bagagem intelectual, somos nós próprios.
Eis, por exemplo, a luta que durante várias gerações Dioniso e Apolo travaram, em todas as ideias e em todos os sentimentos; a religião, a arte, a filosofia sendo seus campos de batalha. Apolo e Dioniso representavam duas concepções diferentes do mundo e da vida. Cada um de nós, mesmo sem sabê-lo, é apolíneo e dionisíaco - como seu veredicto não seria afetado? - Bem mais, nessas matérias - as mais graves - mudamos várias vezes de opinião da juventude, a opinião da idade madura, a opinião dos anos intermediários. Não se poderia contar as peripécias da controvérsia entre o bramanismo e o budismo, sem acrescentar algo de si mesmo. Qualquer consciência que acrescentemos, ou mesmo por causa dessa consciência, a opinião pessoa sempre transparecerá.
- Avancemos. Gostariam que mantivéssemos a balança igual entre o justo e o injusto, ou o que tomamos por tal? Que assistíssemos a um assassinato sem socorrer a vítima? Então, não seríamos mais testemunhas, mas cúmplices!
Como é difícil, pois, obter essa imparcialidade, tão delicada que teríamos dificuldade para defini-la! Entretanto, nós a exigimos pura e perfeita, ao menos na intenção. Desde que ela seja sincera, nós lhe pediremos mais do que isso. Nós a consideraremos como verdadeira, se o amor pela verdade inspira-a.
Uma vez mais a estrita imparcialidade não seria suficiente. A exatidão aplica-se aos fatos, não aos sentimentos, ela mede as quantidades, não as qualidades. Um coração só é compreendido por outro coração. A verdade íntima não se revela absolutamente àqueles que só estudam as coisas pela aparência. Não se trata de proceder à maneira de um juiz de instrução - conquanto fosse honesto - avaliando em um processo relativo a roubo a parte de responsabilidade que atribuirá à canalha, ao ladrão e à receptora. Seremos bem mais o irmão que interroga sua irmã sobre o amor nascente que ele pensou surpreender. Mil vezes foi dito, mil vezes era verdade: "Só compreende aquele que ama."
- Muito bem! Mas quão amiúde deveremos escolher entre dois homens que se detestam, entre dois sistemas que se contradizem! O Inferno de Dante foi inspirado pelo pensamento católico, e o Paraíso de Milton pelo pensamento protestante; como fazer?
- O que faremos? Nós os deixaremos amaldiçoarem-se mutuamente, e desfrutaremos no poeta florentino o que extrapola o catolicismo, e no poeta inglês, o que transcende ao protestantismo. Isso nem sempre será fácil, mas será necessário, custe o que custar, encontrar o meio para concretizá-lo.
III
Esse meio, não tenho de vo-lo ensinar, e não tendes de descobri-lo. Não ignorais em absoluto a Lei da Evolução que nosso século decerto não inventou, pois foi pressentida, ora claramente, ora obscuramente, pelos pensadores de todas as épocas e, inclusive, pelo povo; sobretudo pelo povo, poder-se-ia dizer. A glória de nossa época é tê-la melhor compreendido, tê-la formulado com vigor, tê-la demonstrado, agindo na fauna bem como na flora, na humanidade assim como na animalidade, na psicologia bem como na fisiologia. Assim como o indivíduo, as coletividades passam do nascimento à morte atravessando desenvolvimentos análogos. As ideias também. Os sistemas de maneira semelhante, quer se trate de filosofia, arte ou economia política. Mesma lei para os dogmas e as crenças, mesma fatalidade para as sociedades religiosas bem como para as sociedades civis. Estão abrigados sob a mesma insígnia as repúblicas e os impérios.
Tudo o que vive morrerá, tudo o que se agrega desagregar-se-á, tudo o que se desenvolve, decompor-se-á. A doutrina que nossos cientistas provam por irresistíveis argumentos, o Mahabharata havia-o formulado com melancolia e o Eclesiastes com tristeza; a evidência dos fatos impusera-se aos espíritos inteligentes.
Não estudaremos os dogmas em si mesmos, apenas esboçaremos sua formação e sua história. Bastar-nos-á contar, deixando aos outros o cuidado de defender que a evolução é ela mesma sua própria justificação. O que se produz nunca deixou de ter sua razão suficiente.
Àqueles que se colocam resolutamente no terreno da evolução, quão fácil é a imparcialidade! Que interesse teriam em combater um sistema, em desmantelar uma doutrina, sabendo que doutrinas e sistemas morrerão, cedo ou tarde, de velhice? O tempo não deixará de destrui-los. O Tempo, um Saturno, tem a mania de devorar seus filhos.
Aos teólogos da antiga Sorbonne acontecia de lançar-se suas perucas mutuamente quando discutiam a ortodoxia dos diversos comentários relativos ao milagre de Josué detendo o sol, quando fixavam o ano preciso da criação do mundo, quando raciocinavam ao senhor deus repousou por sua obra prodigiosa - teria sido um sábado, em honra à antiga aliança? - teria sido um domingo, em honra à nova? No calor da disputa ter-se-ia podido medir a ignorância dos disputantes. Fracassaríeis em reconciliar aquele que só viu um lado da questão e aquele que só viu o outro. Eternas são as discussões entre os que só estão parcialmente errados e aqueles que só estão parcialmente certos. Mas não é absolutamente aqui que nos engajaremos em irritantes discussões, em odiosas controvérsias. Nossa intenção não é em absoluto julgar nem condenar, mas apenas compreender. Benevolente com todos, a ciência faz a paz nos espíritos e nos corações.
IV
Cada religião, dizendo-se porvir de uma revelação divina, devia negar seus rivais. Fatalmente seus adeptos tornavam-se os contraditores e os encarniçados adversários de toda doutrina que lhe fazia concorrência. As religiões desenvolveram mais animosidade em torno delas do que jamais fizeram o princípio dito das nacionalidades e a instituição da propriedade privada - por sinal, essa religiões não são a mais sagrada das propriedades e a razão profunda das nacionalidades? - "Não há ódio senão de teólogos", dizia Lutero. Ele sabia do que falava, e podemos crer nele. Os ódios dos protestantes entre si, dos protestantes contra os católicos, dos cristãos contra os judeus e muçulmanos - poderíamos continuar a enumeração - fizeram verter sangue e lágrima em profusão. A personalidade dessas religiões sendo exclusiva, exclusiva como era a "ciência" que elas desenvolviam, nada saía de suas oficinas senão marcado do selo de uma ortodoxia especial.
As coisas transcorreram assim até a metade do século passado, até à emancipação da razão humana. Antes da ilustre Enciclopédia, as ciências eram julgadas pela revelação, após a Enciclopédia, as revelações foram julgadas pela ciência. O impulso foi decisivo; ele deu aos espíritos uma nova direção, mudou o equilíbrio do mundo intelectual, modificou sua órbita.
Entretanto, não hesitamos em reconhecer que os enciclopedistas e seus sucessores imediatos não fizeram das religiões, e da religião cristã mais particularmente, senão uma crítica superficial e maculada de insuficiência; eles só as observavam através do prisma de Virgílio e de Platão.
Mas eis que Anquetil-Duperron trouxe da Índia a tradução do Zend-Avesta. Em seguida, encontrou a interpretação dos signos hieroglíficos e dos signos cuneiformes, os quais desvelaram as religiões do Nilo e do Eufrates. Apareceram na Europa os Vedas e o Livro de Manu; surgiram o bramanismo e o budismo. Nasceu uma nova ciência: aquela das religiões comparadas.
Essa nova ciência já prestou serviços de grande relevância. Com enormes labores, uma admirável paciência que clarões de gênio atravessavam, uma plêiade de homens, objeto de nossa admiração e de nosso reconhecimento, recuaram os milites da história; destrinçando as origens das religiões, eles esclareciam as origens dos povos.
Todavia, ocupados como estavam com as religiões que eles descobriram nos livros e documentos, nossos estudiosos não se embaraçavam com crenças mantidas pelas tribos dos países bárbaros, nem pelos camponeses ignorantes dos países civilizados. Essas crenças, elas passavam outrora, elas ainda passam na ciência oficial como um amontoado de superstições grosseiras, um cafarnaum de imaginações ridículas, a estupidez levada ao absurdo. Grande favor quando um teólogo consente admitir que no meio dessas tolices pôde conservar-se algum vestígio da revelação que dizem ter sido feita a Noé, após o dilúvio. Insigne benevolência quanto antropólogos reconhecem que algum desses detritos lembra uma tradição mais ou menos histórica.
Entretempos, admiráveis resultados eram obtidos por filósofos, historiadores, jurisconsultos que, buscando as origens da família, da herança, dos direitos do pai e do marido, ousaram instituir uma enquete entre as tribos selvagens e as populações primitivas.
O estudo das tradições populares havia sido empreendido com vigor e inteligência pela escola alemã e pela escandinava; a escola inglesa pôs-se a participar assim como várias outras; enfim, a escola francesa entrou no movimento; mais do que qualquer outra ela tem dificuldade de afastar-se da tradição pretensamente liberal mas banalmente racionalista, que a geração de 1830 havia instaurado. Por outro lado, viajantes cada vez mais bem compreendidas sobre as crenças e as superstições longínquas: pouco a pouco elas completam-se e esclarecem-se umas às outras.
De todas essas informações, sobressai um resultado, uma convicção impõe-se: todas as superstições assemelham-se, as dos selvagens bem como aquelas dos civilizados; todas fazem a Superstição, assim como as religiões fazem a Religião. As superstições são a matéria primeva que se evapora em mitos e símbolos, cristaliza-se em dogmas e teologias. Expliquemo-nos bem: o termo "superstição", nós o compreendemos sem seu sentido rigorosamente etimológico, sem acrescentar-lhe qualquer nuance de censura nem de desprezo; ele designa as ideias e os sentimentos que subsistiram da épocas longínquas até nós; são reminiscências. Elas sobrevivem na criança, pois todo homem desenvolve-se como desenvolveu-se a humanidade. Cada um de nós teve seu período de ignorância e ingenuidade, cada um que seguiu com delícias os gestos maravilhosos do "Pássaro azul, cor do tempo", acreditou, ao menos parcialmente, no romance Cinderela, nas proezas do Vento de bise. Acreditava-se verdadeiramente nisso? Certamente. No entanto, tínhamos o sentimento de que se tratava do maravilhoso, isto é, das coisas que não se vê todos os dias, e amávamos esses contos pelo estado de alma que eles despertavam. Passávamos da fase intelectual na qual permaneceram longamente os Primitivos. A textura do cérebro era aquela de sua época. Imaginavam tudo porque não conheciam nada, e criavam antes de aprender. Mais tarde, reunimos conhecimentos ditos positivos; acumulamo-os durante toda a vida; felizes se, antes de partirmos, encontramos tempo para classificá-los e ordená-los, avaliar o seu valor.
Assim, em vez de explicar as superstições vulgares pelas religiões oficiais, assim como geralmente acontece, explicaremos as religiões pela superstição, graças à qual fazemos entrar no círculo normal do desenvolvimento essas regiões múltiplas, que provocaram tantas contestações, cada uma apresentando-se como a Verdade, e qualificando severamente todas as suas rivais; atribuimo-lhes um princípio, um desenvolvimento, um fim; encontramos seu lugar na revolução universal.
Aplicado ao temos de nosso estudo, o método é novo, portanto, atraente. Ele simplifica os procedimentos, aumenta e amplia os resultados. Se desejar-des, nós nos colocaremos ao trabalho.
Élie Reclus
1827 - 1904