Ser eminentemente social e consciencioso, o homem é a tal ponto assim feito pela natureza que, mesmo quando comete as maiores infâmias, não contente das vantagens que extrai disso, ele busca também algum pretexto e algum motivo plausível para justificar seus atos, tanto ante sua própria consciência como ante aquela do público. É certo que há sempre uma grande hipocrisia nessa tendência a desculpar-se e fazer crer que o que é negro é branco. Mas essa hipocrisia não é apenas uma manifestação negativa do sentimento e da necessidade de justiça que existe no fundo de todo homem, de qualquer modo que ele tenha sido dotado pela natureza. Fazer calar essa inclinação à injustiça, conter seu desenvolvimento natural por sempre contrário a toda desigualdade e a todo privilégio, ou a falsificar a ponto de excluir a maioria em proveito da minoria opressiva, poderosa e divinamente privilegiada: tal é a obra secular da religião.
Todas as religiões passadas e presentes, sem excluir de forma alguma o cristianismo, foram a religião do mais forte. É a consequência necessária da própria natureza da religião.
Decerto não convém aqui e estudar por quais vias os homens chegaram a criar seus deuses. Creio ser necessário, no entanto, inclinar-se sobre a questão a fim de demonstrar o que é para mim uma verdade incontestável, a saber, que o cristianismo, e sobretudo o catolicismo, exerceu numa certa época uma influência deletéria e desmoralizadora sobre raças eslavas. Busquemos suas causas.
A religião, dizem, é o primeiro despertar da razão humana. Sim! Mas sob a forma de uma aberração. A religião, acrescentam com alguma razão, começa pelo temor. Nada de mais verdadeiro, com efeito. Despertando aos primeiros raios desse sol interior que denominamos consciência de si, mas muito lentamente, passo a passo, desde o langor magnético, a existência unicamente instintiva que ele levava no estado de pura inocência ou animalidade, o homem nascido, como todo animal, no temor do mundo exterior que, se ele apoia-o de um lado, do outro cerca-o e ameaça-o de morte a todo instante, o homem teve necessariamente esse mesmo temor por primeiro objeto de sua reflexão nascente. As coisas e todos os seres que, mais do que todos os outros, inspiraram-lhe esse terror instintivo ou reflexo, ainda não consolidado pela razão, foram seus primeiros deuses. Vendo neles um poder que eles não tinham, suplicou-lhes, adorou-os, divinizou-os, atribuiu-lhes todas as qualidade à medida que sua reflexão fortalecia-se, que abarcava um mundo mais vasto, obedecendo antes instintivamente, depois conscientemente, a essa lei de causalidade que o faz remontar dos efeitos e das manifestações aparentes às forças misteriosas e invisíveis que os produzem, ou que crê produzi-los; o homem criou a ideia da causa primeva e imaginou-a como o Ser supremo, o ser por excelência, absoluto e imenso, em quem todo o mundo do existente encontra sua origem e do qual ele emana de um modo ou de outro. A essa divindade universal criada pela imaginação do homem, mas um pouco também por sua reflexão, e que no politeísmo dispersa-se e fragmenta-se numa multidão de deuses aparentes, hierarquicamente coordenados ou subordinados um ao outro, e os quais o monoteísmo, sacrificando os deuses secundários, reconstitui à unidade, a esse ser supremo e infinito, digo, para sempre separado da vida real e oposto ao mundo visível, a esse deus fictício relegado a um céu fictício, o homem fez a homenagem de atribuir todas as suas próprias perfeições naturais. Disso resultou que o antropomorfismo foi a essência de toda religião, e que o céu, morada dos deuses, sendo, na realidade, apenas um espelho fiel transmitindo ao crente sua própria imagem invertida, enriqueceu-se, por nossas próprias mãos e às nossas custas, de todos os despojos terrestres. A religião é, sem sombra de dúvida, um roubo cometido pela imaginação religiosa em detrimento da terra e dos homens, e em benefício do céu e dos deuses.
Mas a ação da religião não consiste apenas em retirar da terra as forças naturais, e do home suas qualidade puramente humanas à medida que ele descobre-as tanto no interior como no exterior de si próprio, para transformá-las, pelo efeito de sua imaginação, em tantos atributos e entidades divinos. Realizando essa transmutação, a religião muda radicalmente a natureza delas, falsifica-as e corrompe-as, dá-lhes uma direção totalmente oposta à sua primeira destinação. É por isso que a razão humana, essa única fonte de toda verdade para o homem, tornando-se razão divina, torna-se incompreensível e impõe-se aos crentes como a revelação do absurdo. Eis porque o respeito pelo céu torna-se desprezo pela terra, e a adoração da divindade torna-se crueldade para os homens. O amor humano, essa imensa solidariedade fundada na identidade natural, intelectual e moral de todos os seres humanos, cujo desenvolvimento deverá cedo ou tarde abraçar toda a humanidade sem distinção de origem, cor e raça, essa atração totalmente humana, inteiramente terrestre, logo após se transformar em caridade divina, torna-se, de repente, o flagelo da humanidade. O sangue vertido desde os começos da História, as inumeráveis torturas infligidas à humanidade, os massacres de milhões de vítimas, o extermínio de povos inteiros em nome da religião, e para maior glória de Deus, são as provas disso. Todos os deuses, começando por aqueles do politeísmo até ao do monoteísmo judaico, cristão e maometano, são, como observava Proudhon, o pensador mais intrépido e mais sincero deste século, seres misantropos aos mais alto grau, invejosos da felicidade e, sobretudo, da dignidade dos homens. Só concedem a uma minúscula quantidade de eleitos sua graça caprichosa e avara para entregar à sua raiva exterminadora e à sua cupidez sanguinária as massas malditas e deserdadas; de sorte que a própria justiça, essa mãe futura da igualdade, tão logo transportada ao céu pela imaginação religiosa e transformada em justiça divina, logo recai sobre a terra, tal um arbítrio divino, e em qualidade de graça celeste, semeia por toda a parte a iniquidade, a violência, os privilégios e todas as monstruosas desigualdades do pretenso direito histórico.
Não posso, contudo, afirmar que a religião é um mal. Se ela sempre foi, e se, infelizmente ainda o é hoje, é um mal natural e inevitável, assim como podem sê-lo o desenvolvimento de qualquer faculdade humana, os erros e as faltas. Ela é, como dissemos mais acima, a primeira expansão da razão humana na desrazão divina, a primeira luz da verdade humana através da mentira divina, a primeira manifestação da justiça a através das iniquidades da graça. Enfim, é a aprendizagem da liberdade por meio do jogo dos homens e dos deuses. Mas uma vez realizada essa prova inevitável, será necessário destruir os ídolos, e é só aniquilando a divindade fictícia que se poderá conquistar a razão racional, a verdade verdadeira, a justiça real e a liberdade.
Ora, se é verdade que, por um lado, graças à religião, os povos selvagens liberaram-se pouco a pouco da escravidão onde a natureza havia-os colocado, é igualmente incontestável que a religião, ao libertá-los desse jugo natural, rapidamente os condenou a carregar os grilhões mil vezes mais pesados dos deuses, dos homens fortes e das castas privilegiadas. Todos os vencedores da História sempre encontraram na religião a consagração de seus triunfos e de suas invasões. Os crimes mais horríveis, as injustiças mais atrozes, as crueldades que fazem eriçar os cabelos foram em todos os tempos e em todos os povos justificados, santificados e, amiúde, ordenados pela religião. Ficamos verdadeiramente estupefatos quando vemos na História o quanto todas as religiões foram ferozes, inclusive o cristianismo, essa religião do amor e do perdão, ou que se quer tal, e a que ponto elas foram impiedosas uma em relação à outra e em relação aos povos que elas davam-se ao trabalho de salvar. De resto, isso é completamente natural: a crueldade é a base misteriosa e essencial de toda religião, e encontra-se na própria ideia do sacrifício e da expiação. Qual é, com efeito, a religião que não prega o sacrifício do humano ao divino, do real aos fictício, da vida à morte? Os deuses são, como as sombras antigas, fantasmas que vivem saciando-se de sangue. Todas as religiões são, portanto, fundadas no sangue, batizadas e confirmadas no sangue. As duas religiões na aparência menos sanguinária, o islamismo e o cristianismo, são decerto aquelas que verteram mais sangue.
Isso deve explicar um fato muito estranho que, nestes últimos anos, causou estupor em toda a Europa. Quando, graças à iniciativa de alguns grandes nobres homens, produziu-se uma agitação salutar pela abolição da pena de morte, ela encontrou em todos os países a mais viva resistência dos sacerdotes. Católicos, protestantes, ortodoxos gregos ou moscovitas, todos os sacerdotes sem distinção de clima, língua e culto, deram-se conta, unanimemente, de que, ao se atacar a pena de morte, destruía-se a base e a própria razão de sua existência.
Examinemos essa razão e a essa base.
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Eu disse há pouco que toda religião é um sacrifício. Mas o sacrifício religioso supõe três pessoas: o homem-vítima, o deus-fantasma e o sacrificador, isto é, o sacerdote-carrasco. Só duas pessoas são reais, a primeira e a última, a segunda é apenas um fantasma atrás do qual se oculta o sacerdote, e que só vive de sacrifícios. O sacerdote, contudo, nunca se sacrifica ou quase nunca, mas sacrifica de bom grado os outros: tais são sua missão, seu ofício e seu eterno alimento. Entre os sacerdotes, mesmo os melhores, encontramos sempre, próximo ao parasita ocioso, o executor das obras santas, o divino verdugo. Há, malgrado isso, aqueles que se sacrificam e que são ao mesmo tempo carrasco e vítima. Mas essa é uma verdadeira exceção, havendo um em cem. São os fanáticos sinceros. Todos os fundadores ou grandes reformadores de religiões devem fazer parte desse número, pois é impossível comunicar no meio das massas a chama de uma nova crença se não se tem interiormente o ardor ou o mais vivo e mais real sentimento dessa crença. Todos os heróis religiosos, tais como Zoroastro, Moisés, Buda, Cristo, Maomé e, sem seguida, seus enviados e apóstolos, foram videntes, crentes, profetas.
Não se pode dizer o mesmo dos sacerdotes das religiões da antiguidades, que quase nunca foram fundadas na fé, mas na tradição, no hábito de sentir, pensar, agir e viver de uma certa maneira consagrada pelo tempo, em resumo, na rotina que sempre exerce uma grande influência sobre o homem. Entre o sacerdotes das antigas religiões não sobreviveu mais a energia individual da fé, mas o espírito onipotente da casta. Ora, se essa casta apoia-se no princípio de hereditariedade, como no mundo antigo, ou na educação sistematicamente aviltante, como na sociedade moderna, o resultado será aproximadamente sempre o mesmo. Ela formará sempre um corpo compacto de homens inexoravelmente separados do resto da sociedade e estritamente ligados entre si pela mentira que eles devem crer, sustentar e propagar no seu interesse comum.
Os sacerdotes creem verdadeiramente nas extravagâncias que eles exibem? Eis uma questão muito difícil à qual é incômodo responder. É evidente que houve em todos os tempos padres demasiados inteligentes para ser crentes e bem a par do que se passa nas sacristias por trás da cortina do altar, para engolir tudo e crer ingenuamente nos antigos e novos milagres. Com uma sinceridade que o honra, Leão X exclamou: "Quanto nos rendeu essa historinha do Cristo!" Esses padres são as cabeças fortes, os politiqueiros da igreja, aqueles que melhor sabem fazer seus negócios aqui embaixo, mas que, no entanto, como a História prova-o, não são menos perseguidores implacáveis dos laicos incrédulos. A seu lado vemos sempre um grupo de padres inteiramente fanáticos, simultaneamente enérgico e ardente. A categoria dos padres inteligentes serve-se e desconfia deles simultaneamente. Tira proveito do odor de santidade que emana de todo o corpo do clero de vida austera e virtuosa e da abnegação amiúde heroica desses padres simples e francamente religiosos; mas ela desconfia deles, tremendo que, por excesso de simplicidade, boa-fé, a fim de não dar pretexto a alguma nova heresia. Lutero estremeceu a igreja católica até em seus fundamentos por ter acreditado cegamente que ela era irrepreensível.
Entre essas duas minorias opostas encontra-se a massa dos padres, daqueles que têm todos os seus defeitos, mas não as qualidades, pois não têm nem a grande inteligência de uns, nem a viva fé dos outros, e formam, em função de seu estado intelectual e moral, uma espécie de juste-milieu entre a crença estúpida e o cálculo interesseiro. É principalmente entre estes que o espírito de casta revela-se poderoso, visto que, não valendo quase nada por eles mesmos, só podem ter uma aparência de existência em rebanho. Qual é, então, a alma que anima esse rebanho?
Toda religião, pagã ou cristã, judaica ou maometana, supõe necessariamente os três fatores seguintes:
1. A indignidade quase absoluta do homem e a necessidade de reconciliar-se por meio de sacrifícios e expiações com a divindade ofendida e encolerizada;
2. A incapacidade de elevar-se sozinho e reconhecer a verdade verdadeira, absoluta, a única que importa reconhecer, com a ajuda de sua razão;
3. A impossibilidade de criar a lei moral sozinho e por meio da união de sua razão e de sua vontade e estabelecer a paz, a ordem pública e a justiça na sociedade. Para a salvação dos homens é necessário que a divindade reconciliada conceda-lhes o perdão e a graça, que ela revele-lhes a verdade divina, absoluta, que lhes dê ao mesmo tempo a lei, e que, uma vez estabelecida em seu seio a ordem religiosa, política e social, ela continue a governá-los segundo seus propósitos, todas as coisas que seriam extremamente incômodas para a divindade fantasma, até mesmo impossível de conduzir a bom termo se não existisse entre o deus fictício e o homem real um ser igualmente real: o padre. Único representante da divindade na terra, o padre desempenha o triplo papel de reconciliador, revelador e diretor supremo da sociedade humana.
Imaginemos agora um homem simples, mortal como os outros, mas trazendo deus dentro de si: que monstro! Cada um de seus pensamentos é uma inspiração proveniente de cima, cada uma de suas palavras, cada um de seus gestos é uma manifestação da vontade divina. Se ele ordena, deve-se obedecê-lo, pois é deus em pessoa que ordena. Para esse deus, do qual está repleto, o padre é tudo, e os milhões de homens que o cercam, nada. Mergulhemos no abismo da perdição e das trevas, eles devem prosternar-se diante dele, tendo em vista que só ele tem em suas mãos a luz e a graça, a maldição e a salvação. Ele pode obrigar e liberar, perdoar e condenar.
Qual pode ser o estado de alma de um homem assim colocado à frente da multidão? Se ele faz parte da categoria dos homens fortes e dos políticos inteligentes, será um espertalhão que se aproveitará da imbecilidade e da crueldade das massas ignorantes, tanto para seu interesse pessoal como para aquele de sua casta, de onde retira sua existência e sua força. Se é um crente fanático, decerto terá piedade dessas multidões, mas ao mesmo tempo as desprezará; e é preciso que as despreze, tendo em vista que a divindade reúne todas as perfeições, e que o homem, nos antípodas de deus, o homem não eleito e não purificado pela graça, é, por via de consequência necessária e natural, o receptáculo de todas as imperfeições, de todas as impurezas e de todas as imbecilidades. Não se lhe poderia reconhecer qualquer qualidade independente, natural e digna de respeito sem proclamar, por isso mesmo, a inutilidade ou, ao menos, a ineficácia relativa de deus, e sem desmistificar sua glória. O cristianismo, última religião, porquanto exprime a própria essência de toda religião, está a tal ponto convicto da imensidão infinita do abismo que separa o homem de deus que, para preenchê-lo, foi necessário o sacrifício, o suicídio de deus, suicídio contudo inútil e frustrado, pois deus, ressuscitado pela fé cristã, continua ainda hoje a esmagar-nos com toda a sua desoladora e inumana perfeição.
Se ele ama deus, o padre sincero e crente deve necessariamente desprezar e odiar tudo o que é humano. Os dois princípios, humano e divino, chocam-se e negam-se reciprocamente. O padre deve, portanto, reconhecer que tudo o que parece humanamente verdadeiro, justo, bom e belo é a mentira absoluta, a iniquidade absoluta, o mal e o feio absolutos perante deus; que tudo o que é natural é maldito e que só o inverso e o sobrenatural merecem nosso respeito e simpatia. Todas as afeições terrestres, tesouros do homem natural, tudo o que constitui a nobreza e a virtude do homem humana e terrestre, amor pela família, ternura conjugal, afeição fraternal, amor dos filhos pelos pais e dos pais pelos filhos, amizade, honra, dignidade pessoal, patriotismo, piedade, humanidade, culto das artes e das ciências e adoração da verdade e da justiça a qualquer preço, tudo isso deve ser sacrificado sem piedade ao amor divino. Só nessa condição pode-se ser um padre sincero. O padre deve matar o homem nele e extirpar toda simpatia de seu coração, toda piedade carnal e terrestre. Pois nada irrita mais a inveja ultrajante do céu do que esse sentimento, essa ideia e esse culto da humanidade que, pressentidos e de um certo modo profetizados pelos maiores espíritos da Grécia antiga, depois redescobertos na época da Renascença, foram enfim proclamados como novo dogma de uma religião completamente humana pelo grande século XVIII, de início pelos filósofos, e um pouco depois pela imensa e salutar revolução, a mais bela das revoluções já realizadas na terra, revolução no meio da qual vivemos, que nos salvará, nós e os nossos bisnetos, e da qual somos hoje, ah sim!, os servidores demasiados tímidos e fracos.
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Nenhuma religião, nem mesmo aquela dos antigos gregos, comparativamente a mais humana, compreendeu, abraçou, nem pôde abraçar e tolerar a ideia de humanidade. Por ter compreendido essa ideia, Sócrates foi condenado a beber cicuta em virtude de um julgamento solene realizado pela mais livre e mais civilizada das cidades do mundo antigo. As religiões orientais só conheceram castas, não homens. A religião judaica, base e ponto de partida do cristianismo, é igualmente inumana. Jeová, atribuindo a terra de Canaã ao povo eleito, hesitou em ordenar a Moisés, é horrível dizer isso, que exterminasse todas as populações pagãs. E quando os hebreus, mais humanos do que seu deus, pouparam uma parte delas, atraíram para si a terrível cólera e a implacável vingança desse senhor impiedoso. A religião greco-latina não reconhecia senão os cidadãos, excluindo todo o resto do gênero humano que ela condenava indiferentemente à morte ou à escravidão. Enfim, não é verdadeiro que o cristianismo inaugurou a era da humanidade, pois, a despeito de todas as aparências de mansuetude e caridade, não há religião mais feroz e mais inumana. É verdade que ele aniquilou o patriotismo e o culto da cidade. E, em relação a isso, mostrou-se desde o início não humano, mas cosmopolita. Mas ele só destruiu todas essas pátrias terrestres para fundar uma muito mais limitada, a cidade dos eleitos, lá em cima no céu. Convém lembrar essa frase tão terrível: "Muitos são chamados, mas poucos são eleitos".
E, sobretudo, foram impiedosa e inexoravelmente excluídos todos esses bilhões de homens que nem sequer foram chamados porquanto morreram antes da vinda do Cristo. Em seguida, muitos outros bilhões de homens nascidos após o Cristo, eles também não chamados porque a propaganda cristã nunca chegou até eles. Enfim, se nos limitarmos aos povos cristãos, e se nos situarmos do ponto de vista da igreja católica, estaremos facilmente em condição de excluir todos os povos envenenados pelo protestantismo e pelo cisma greco-oriental. Se, ao contrário, começarmos pelo mundo grego, será preciso excluir os protestantes e o rebanho católico. E se fôssemos protestantes sérios e sinceros, deveríamos proclamar com Lutero, Melanchthon e sobretudo Calvino, que só seria salvo o número infinitamente pequeno daqueles que foram eleitos desde a eternidade pela graça divina, e que, por consequência, a imensa maioria do gênero humano está condenada. Por outro, cada igreja proclama por sua vez que, mesmo em seu seio, o número dos agraciados, comparado àqueles dos condenados, forma uma minoria quase imperceptível. De sorte que, apoiando-nos sobre os número, estaremos totalmente no direito de proclamar que o cristianismo é a religião da danação e não da salvação; a religião do deus perfeito, isto é, da inumanidade absoluta. O sacerdote cristão é o representante obrigatório da divina crueldade.
Sei muito bem que existe um bom número de padres de uma natureza tão boa e dócil que, cheios de uma simpatia profunda e real pelos humanos, esforçam-se para conciliar o humano com o divino. Assim, Fénelon, o benevolente, tocado por uma ternura pia por essas crianças que morrem sem ter podido receber o batismo, ousou escrever que deus em sua infinita misericórdia encontra o meio de salvar essas inocentes criaturinhas. Bossuet, o fogoso, ortodoxo Bossuet, logo recorreu a todos os raios de sua santa retórica para aniquilar essa piedade que ele qualificava com razão de vil e culpada. Sim ele tinha mil vezes razão, pois, se se quiser ser cristão, deve-se aceitar como base fundamental de um cristianismo sério o dogma da redenção, e reconhecer que todo homem nasce no pecado, num abismo de perdição e morte, que só há salvação pelo sacrifício e pelo sangue de Jesus Cristo, filho de deus; que não existe outro meio para participar da salvação senão aquele do batismo e da fé, e que, por consequência, a criança ainda em jejum de fé e sem batismo deve ser inexoravelmente condenada. Sustentar o contrário significa destruir desde as raízes o mistério divino da encarnação, da revelação e da redenção, isto é, destruir deus pelo amor aos homens.
O padre que ainda conserva um caráter humano é um infeliz, e, muito amiúde, um mártir que se esforça em vão para conciliar nele o inconciliável: a divindade com a humanidade. Nessa luta, uma ou outra deve sucumbir, e, na maioria da vezes, é a divindade que triunfa quando esse padre é humilhado e tem, assim, o coração rompido, quando sacrificou suas afeições terrestres, seu livre pensamento, a dignidade natural de seu caráter, seu nobre orgulho, quando cobre sua cabeça de cinzas, prosterna-se na poeira e proclama que não é nada.
Entre os melhores padres, entre os mais humanos e benevolentes, por pouco que permaneçam padres e não abandonem a batina, é sempre o céu que triunfa. O céu! Quer dizer, o espírito, a vontade, o interesse coletivo do corpo sacerdotal por inteiro que o domina e o aniquila como pessoa livre, absorve-o em seu conjunto misterioso e formidável, a ponto de não ser mais nada além de seus representantes-escravos e máquinas. E se um padre não é absolutamente cruel, cúpido e ambicioso por si mesmo, ele é sempre cruel, ambicioso e cúpido no interesse da igreja, amiúde inconsciente e involuntariamente, e, inclusive, com a firme convicção de favorecer aqueles que ele atormenta e caça em nome de seu deus a quem se liga como algo real.
Toda igreja, pagã ou cristã, sempre contemplou dois objetivos: a dominação e a riqueza, ou melhor, um único, o primeiro, pois a riqueza é apenas um meio, o mais eficaz, para adquirir o poder. Devemos ser justos: os padres foram os primeiros a sabê-lo. O fenômeno tão estranho que hoje nos oferece a igreja católica, cujo princípio é fundado no desprezo dos bens deste mundo, e que, malgrado isso, considera o negócio do patrimônio eclesiásticos como uma questão de vida ou morte, e proclama o poder temporal como um quase dogma, explica-se de uma maneira completamente natural: deus tendo-se tornado preguiçosos, os milagres demasiados raros e a crença nesses milagres quase nula, só resta a riqueza para sustentar o poder vacilante da igreja.
Toda igreja e todo corpo sacerdotal, de qualquer religião que seja, querem e devem querer ser poderosos. Sendo os únicos representantes da divindade na terra, os sacerdotes devem dominar: tal é o fundamento essencial e invariável de toda crença sacerdotal, desde que as religiões existem sobre a terra. O íntimo pensamento de todos os sacerdotes do mundo passado e presente, e que está tão vivo neles hoje quanto estava há mil anos, conquanto não ousem dizê-lo abertamente, é que só sua casta deve reinar sobre os homens, e que todo homem revestido de poder sacerdotal, rei, nobre ou povo, deve fazer parte do rebanho humano que eles têm o privilégio e a missão exclusiva de fazer pastar, segundo a expressão favorita dos papas de Roma. Seu ideal é governo teocrático ilimitado e puro.
Infelizmente para eles, mas felizmente para a sociedade, os sacerdotes sempre encontraram um limite nas pretensões rivais da casta guerreira. Mas não podemos ocupar-nos aqui deste flagelo da humanidade denominado militarismo. Digamos apenas que o sacerdote e o soldado são dois carnívoros que se enfrentam a dentadas para saber quem será o primeiro a devorar a vítima.