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Vindicação do Ateísmo


O século das Luzes assistiu à confluência de várias das cabeças mais lúcidas do pensamento ocidental; figuras como Voltaire, Diderot, D'Holbach, Helvetius ou Bayle, compartilharam o mesmo mundo e erigiram-se em adversários declarados do obscurantismo clerical e da superstição religiosa. O anticlericalismo iluminista, seu anticristianismo, nem sempre foi exibido aberta e publicamente posto que as ancoragens políticas e sociais ainda permaneciam firmemente atreladas às estruturas do Ancien Régime e o sistema repressor encontrava-se perfeitamente azeitado.

O século XVIII ofereceu a primeira crítica sistemática da religião como projeto de poder. O maginífico Diderot, editor junto com d'Alembert da Encyclopédie, incluiu numa de suas acepções a seguinte definição de Fanatismo: "é um fervor cego e apaixonado brotado da superstição, que causa ações ridículas, injustas e cruéis; não só sem vergonha nem remorso, mas com uma espécie de gozo e satisfação. O fanatismo, por conseguinte, é a superstição em ação".

Poucas dúvidas restavam de que o Fanatismo equivalia para os enciclopedistas a Religião. 

As sátiras e os flagelos de Voltaire, que exerceu maior influência, junto com Rousseau, sobre a Europa dos salões, visavam os grandes absurdos que albergava a doutrina cristã: a apologia da dor, da culpa e do pecado original, assim como a falta de compromisso com a verdade. Mas, por cima de tudo, a religião era o território do obscurantismo, do temor, uma epopeia inverossímil e opaca à razão que se sustentava na submissão e na abdicação da inteligência e do pensamento: "não se adora, não se crê senão aquilo que se teme".

O cristianismo foi desde o início uma religião atravessada por violentas lutas internas e querelas dogmáticas.

Os cristãos estavam, como escreve Pepe R., em sua obra Mentiras Fundamentais da Igreja Católica, "brigados uns com os outros tratando de impor cada doutrina própria ao resto dos seguidores de Jesus e confrontados com todos os judeus", dando um espetáculo deplorável. "A facção católica e seus dogmas seria a vencedora final graças a Constantino; mas não cabe ignorar que hoje, ainda pior que nesses dias, o cristianismo encontra-se dividido em várias grandes religiões e centenas de seitas de todos os tamanhos, cada uma delas arrogando-se legitimidade e a ortodoxia do seguimento de Jesus".

Uma das necessidades vitais do cristianismo já desde seus primórdios foi a de opor-se com violência à independência de pensamento, impor condutas gregárias e passivas, e educar temperamentos aterrados perante a cólera divina e as punições eternas.

Não bastava fazer dos homens e mulheres eternos reféns da cólera divina; além disso, foi preciso criar uma categoria de nonatos e lactantes pecadores. Para paliar essa situação institui-se um sacramento, o batismo, que lavava e purificava o precoce pecador, um exercício de violência intelectual insólita que se tornou instrumento de conversão forçosa. Por intermediação de Agostinho, o batismo propagou-se a partir do século IV, embora não tivesse ido até ao Concílio de Trento (1545-1563), quando se tornou obrigatório, e tal como acontece em nossos dias, prescindia sem remorsos da independência de pensamento do recém-introduzido nos mistérios da fé: antes de pensar devia acreditar; ademais, de um ponto de vista administrativo, mesmo que os batizados hoje não sejam crentes, o simples fato de terem sido registrados como cristãos nos censos proporciona à Igreja fabulosos benefício econômicos ao mesmo tempo que aumenta seu prestígio e influência. Quer dizer, portanto, da liberdade de eleição num processo em que seres sem consciência nem discernimento são entregues atados de pés e mãos a uma organização que tratará por todas as formas ao seu alcance de modelar a mente da criança para percutir nela a credulidade e erradicar o critério próprio?

Como todos os grandes projetos de poder, o cristianismo caracterizou-se por um acentuado sentido proselitista e uma inclinação ecumênica que amparavam uma vontade de conquista e expansão espiritual em harmoniosa síntese com um poder temporal disposto a estabelecer pactos simbióticos com a Igreja. Os métodos para levar a palavra aos pagãos e aos bárbaros importavam pouco se, finalmente, conseguissem redimi-los contra sua vontade. O assassinato, a tortura, a extorsão, o terror e a aniquilação cultural foram instrumentos de evangelização frequentemente utilizados pelos arautos do nazareno. Mas que importavam os meios se no século IV, um pai da Igreja grega, Basílio de Cesareia, no seu Tratado do Espírito Santo, desmentindo a afirmação de Aristóteles de que a escravidão possuía uma origem natural, afirmava que tanto ela quanto a servidão serviam para a "maior glória de deus"?

Os princípios fundamentais que guiaram o catolicismo: dogmatismo, punição das heresias, submissão individual, expansionismo, sevícia, hierarquia, violência, foram igualmente a plataforma sobre a qual se erigiu a Reforma protestante, a fratura mais traumática do cristianismo. Auspiciando uma inspiração literal das Sagradas Escrituras os reformistas pretendiam dogmatizar sobre o inquestionável caráter de lei sagrada das mesmas, sua natureza de verdade absoluta longe do alcance das interpretações.

O desacato e a insubordinação celestes implicavam um fim horrível que justificava plenamente o ditado popular de "castigo bíblico". Para o cristianismo, a salvação da alma dependia exclusivamente do cultivo virtuoso da obediência e da submissão.

Onde se admite um Deus há um culto, onde há um culto a ordem natural dos deveres morais está revirada e a moral corrompida.

Para os philosophes, religião, fanatismo e guerra foram termos com relações de parentesco íntimas; toda a história do cristianismo pode ser lida em clave bélica: guerra exterior contra os infiéis, e guerra interior contra os dissidentes. Analogamente, sua virulência anticlerical repudiava a clamorosa hipocrisia que consistia em pregar a pobreza enquanto se acumulava uma riqueza material fastuosa. Apesar de sua ambígua recusa teórica dos bens terrenos, a Igreja tornou-se uma extraordinária potência econômica graças à acumulação de patrimônio móvel e pecuniário derivado de saques, extorções, roubos, doações, propinas, cessões, criação de limbos intermediários (Purgatório), ou a venda de Indulgências, passaportes carimbados para ricos com destino ao Paraíso (embora os pobres também pudessem aceder a este tipo de redenção pelo módico preço de cinquenta chicotadas), com o que conseguiu a façanha de que os camelos passassem pelo buraco de uma agulha, enchendo o paraíso de ricos.

Assim como o patriotismo tornou-se, segundo o feliz aforismo de Samuel Johnson, o último refúgio dos canalhas, a fé, sustentada sobre especulações metafísicas inverossímeis, foi desde o início o último bastião da covardia intelectual e uma rota de fuga para evitar encarar a existência com honestidade e sensatez. À diferença da natureza da ciência, apoiada sobre os pilares da razão e da prova, a religião apelou sempre à especulação metafísica e à fé como princípios de demonstrabilidade. 

Erigida sobre as bases iluministas, a crítica do anarquismo à superstição teológica articulou-se basicamente em dois planos: por um lado, num fustigação da dupla moral do cristianismo veiculada através de uma profusa produção de livros, opúsculos, jornais e publicações de caráter satírico e de um macabro humor negro onde se expunham os vícios, os escândalos sexuais, as praticas libertinas e a podridão existente no seio da Igreja. Esta literatura enfatizava as inconsistências, incoerências, contradições ou graves inverossimilhanças da doutrina.

Essa crítica resulta elementar para a criação de uma sociedade verdadeiramente democrática.

Submeter a vontade dos homens e mulheres aos vaivéns dos deuses e assumir uma existência entendida como trânsito para uma vida eterna equivale a denigrir nossa inteligência e abjurar nossa capacidade de ação.

Em vez de uma teologia da libertação, como afirmava um filósofo, seria mais sensato livrar-nos da teologia de uma vez por todas.

A verdade faz-nos livres, a mentira faz-nos crentes.

Como consignou Freud em seu O Futuro de uma Ilusão, a plena realização psicológica e civilizatória de uma sociedade deve abandonar toda ilusão infantil de vida ultraterrena e liberar-se do autoengano, da falsidade e da alienação. Em uma era como a nossa, particularmente crédula em matéria de reencarnações, espíritos, demônios e astrologias, essa "metafísica dos idiotas", como definia Adorno, resulta imprescindível deixar de contemplar submissos e resignados o céu e resgatar o verdadeiro sentido trágico da vida, encarando com inteireza nossa peremptoriedade primordial; só assim poderemos preparar-nos para olhar com garantias o horror vacui, esse medo do vazio inerente a nossa humana condição.

Como escreveu Diderot, "as Luzes são um bem do qual se pode abusar, sem dúvida; a ignorância e a estupidez, companheiras da injustiça, do erro e da superstição, sempre são males".

Michel S.


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