Quando eu era estudante, fiquei irritado com um anglicista porque ele contou quantas vezes na obra de Shakespeare se ouve bater tambores, soprar flautas e tocar outros tipos de música guerreira. Incapaz de entendê-lo, eu o qualifiquei de pedante... Mas em meus diários do período nazista, em 1940, escrevi: "Tema para seminário - mandar pesquisar quantas vezes os termos fanatisch [fanático] e Fanatismus [fanatismo] aparecem em comunicações oficiais e quantas vezes em publicações não diretamente ligadas à política, como por exemplo os novos romances alemães ou traduzidos de línguas estrangeiras." Três anos depois, repassando esse trecho, eis que me deparo com um "Impossível! A palavra 'fanático' aparece uma quantidade absurda de vezes, mais do que 'os sons de uma harpa' ou 'a areia do mar'. Entretanto, mais importante do que sua frequência foi a mudança em seu sentido. Já escrevi uma vez sobre isso em meu estudo sobre o século XVIII, quando citei um trecho bastante curioso de Rousseau, provavelmente um dos menos conhecidos. Se ao menos este manuscrito conseguisse sobreviver... "
Ele sobreviveu. Ei-lo.
Os iluministas sempre recriminaram os termos fanatique [fanático] e fanatisme [fanatismo] por uma dupla razão. A raiz de "fanático" vem de fanum, santuário, templo. No início, o termo significava pessoa em estado de êxtase, em êxtase religioso. Ora, os iluministas lutavam contra tudo que pudesse perturbar a capacidade de pensar. Sendo inimigos da Igreja, combatiam com rigor todo tipo de superstição religiosa. Para eles, o fanático é, por excelência, inimigo dos racionalistas. Ravaillac, por exemplo, é o protótipo do fanatique, pois assassinou o bom rei Henrique IV por fanatismo religioso. Quando, por sua vez, os adversários denunciam o fanatismo dos próprios iluministas, eles contestam, argumentando que seu zelo é apenas uma batalha contra os inimigos da razão, na qual usam os meios que a razão fornece. Onde quer que o pensamento iluminista penetre, sempre haverá um sentimento de crítica e aversão contra o fanatismo.
Como os outros iluministas, seus "companheiros de partido", como os "filósofos" e os "enciclopedistas'', antes que ele começasse a odiá-los e se tornasse um cavaleiro solitário, Rousseau também usara o termo fanatismo com conotação pejorativa. Na profissão de fé do vigário de Savoia, em que Cristo aparece entre os zelotes judeus, consta a inscrição: "Do centro do fanatismo mais enfurecido emerge a voz da sabedoria máxima:' Mas, logo a seguir, quando o vigário, como porta-voz de Jean-Jacques, se opõe à intolerância dos enciclopedistas, de forma quase mais violenta do que contra a intolerância da própria Igreja, lê-se uma longa anotação: "Bayle conseguiu provar muito bem que o fanatismo é mais pernicioso que o ateísmo, fato inconteste. Mas ele guardou para si uma verdade não menos importante: o fanatismo, mesmo que sanguinário e cruel, é uma paixão intensa e forte, que inflama os corações das pessoas, capacitando-as a desprezar a morte, mas também lhes confere muita vitalidade.
Aqui já aparece a transformação do fanatismo em virtude. Mas, a despeito da fama internacional de Rousseau, essa transformação não surtiu efeito nenhum. Permaneceu escondida nessa anotação. O que o romantismo ganhou de Rousseau foi a glorificação, não do fanatismo, mas da paixão, em todos os seus aspectos e em relação a qualquer causa. Em Paris, perto do Louvre, há um pequeno e gracioso monumento: um tamborileiro ainda jovem irrompe esquina afora, representando o entusiasmo da Revolução Francesa e do século seguinte. Seu toque é para chamar as tropas, despertar os ânimos. Mas somente em 1932 a figura distorcida de seu irmão, o fanatismo, cruza o Portão de Brandemburgo. Apesar daquele elogio discreto, o fanatismo permanecerá até então uma qualidade mal vista, algo a meio caminho entre crime e doença.
A língua alemã não possui um termo equivalente e apropriado para Fanatismus, palavra estrangeira, nem mesmo quando liberada do sentido original, restrito ao campo do ritual. O verbo eifern [sentir fervor] é mais inofensivo. Imagina-se mais facilmente um Eiferer como um pregador arrebatado do que como alguém disposto a manifestar-se com violência. Besessenheit [obsessão] denota mais um estado doentio, que merece pena, sendo passível de ser desculpado, do que alguém que promova ações que constituam risco público. O som de Schwärmer [entusiasta] é claro e límpido. É sabido que Lessing, em sua luta por clareza, foi conhecido pelo entusiasmo. Mas, para ele, deve-se desconfiar até mesmo do Schwärmer. Em Natan, o Sábio ele escreve: "Não o entregues à plebe entusiasta:' Indaguemos o seguinte: se invertêssemos os epítetos de algumas combinações desgastadas, como Düsterer Fanatiker [fanático sombrio] ou liebenswürdiger Schwärmer [entusiasta amável], haveria a possibilidade de se falar de um "entusiasta sombrio" e de um "fanático amável"? A recusa viria da própria sensibilidade linguística. Um Schwärmer não é um teimoso obstinado; ao contrário, prefere soltar-se da terra firme, não enxergar as condições reais e dirigir a atenção aos céus. Felipe II, rei da Espanha, profundamente comovido, vê em Posa um sonderbarer Schwärmer [pessoa especialmente entusiasta].
Não há como traduzir nem como substituir a palavra "fanático" na língua alemã. Quando usada como juízo de valor, é sempre vista com forte carga negativa, com conotação de ameaça e repulsa. Ocasionalmente, quando lemos o necrológio de um pesquisador ou um artista apontando que ele fora o estereótipo do fanático em sua ciência ou sua arte, esse elogio traz consigo a percepção de que se tratava de uma pessoa inacessível, voltada somente para si. Antes do Terceiro Reich ninguém poderia ter pensado em valorizar positivamente o termo "fanático". E a conotação negativa está associada de forma tão indelével à palavra que a própria LTI, vez por outra, a usa com sentido negativo. Em Mein Kampf, Hitler fala com desdém dos Objektivitätsfanatiker [fanáticos da objetividade]. No período áureo do Terceiro Reich surgiu uma monografia enaltecedora, escrita por Erich Gritzbach, chamada Hermann Göring, obra e personalidade, totalmente alinhada aos clichês da linguagem nazista, na qual constava que a mais indigna das heresias, o comunismo, provou ser capaz de educar o povo para que ele se tornasse mais fanático. Esse caso é um deslize quase cômico, uma impossível recaída no emprego da linguagem de outrora. Aconteceu, em casos isolados, até com o próprio mestre da LTI. Em dezembro de 1 944, certamente tendo como modelo o pronunciamento de Hitler, Goebbels ainda fala no "fanatismo confuso de alguns alemães incorrigíveis'.
Eu chamo isso de estranha recaída, já que o nacionalsocialismo se baseou no fanatismo e seu sistema de educação usou todos os meios possíveis para treinar para o fanatismo. Durante todo o Terceiro Reich essa palavra foi muito reconhecida. Tratava-se de supervalorizar conceitos como valentia, dedicação, abnegação, tenacidade ou, mais precisamente, fazer um enunciado global que associava de maneira gloriosa todas essas virtudes. Qualquer conotação pejorativa, mesmo a mais discreta, desaparecia no uso corrente que a LTI fazia dessa palavra. Em datas solenes, como nos aniversários de Hitler ou da tomada do poder, em qualquer artigo de jornal, em qualquer mensagem de congratulações, em qualquer manifestação a alguma tropa ou alguma organização, estava sempre presente um fanatisches Gelöbnis [elogio fanático], ou um fanatisches Bekenntnis [reconhecimento fanático] para testemunhar a fanatischen Glauben an die ewige Dauer des Hitlerreiches [fé fanática na duração eterna do Reich de Hitler]. Isso durante a guerra, quando não se podia mais disfarçar as derrotas! Quanto mais tenebrosa ficou a situação, tanto mais se falava em fanatischen Glauben an dem Endsieg [fé fanática na vitória final] , no Führer, no povo ou no fanatismo do povo, como se a virtude da fé fosse essencialmente alemã.
O termo foi usado mais intensamente nos jornais após o atentado contra Hitler, em 20 de julho de 1944. Constou literalmente em cada um dos inúmeros votos de fidelidade ao Führer.
Essa frequência da palavra no domínio da política a projetou para outras áreas, graças aos escritores ou à conversa diária. Onde antes se dizia ou escrevia leidenschaftlich [apaixonado], passou-se a dizer "fanático': Para que isso acontecesse foi necessário submeter o conceito a um certo enfraquecimento, uma espécie de banalização, uma perda de dignidade. Na citada monografia sobre Göring, o marechal do Reich é celebrado, entre outras coisas, como "amigo fanático dos animais" (nesse caso, a conotação crítica inerente à expressão "artista fanático" deixa de existir, pois Göring é apresentado repetidamente como a pessoa mais afável e mais sociável que se possa imaginar).
Resta saber se o enfraquecimento do conceito implicou também uma perda de virulência. Seria possível afirmar isso com a justificativa de que o termo "fanático" estava assumindo um novo sentido, passando a significar uma feliz mescla de coragem e entrega apaixonada. Mas não é esse o caso. Sprache, die für dich dichtet und denkt [Língua que poetiza e pensa por ti] , Gift, das du unbewusst eintrinkst und das seine Wirkung tut [Veneno que bebes sem perceber e que age sobre ti] - por mais que se repitam essas frases infinitas vezes, nunca terá sido o suficiente.
Entretanto, para a cabeça que comandava a linguagem do Terceiro Reich, a pessoa que se empenhava para que o poderoso veneno fosse plenamente eficaz, o desgaste do termo o enfraquecia. E assim Goebbels se viu compelido ao absurdo de tentar valorizar o que não podia mais ser valorizado. No Reich de 13 de novembro de 1 944 ele escreveu que a situação só poderia ser salva por meio de um "fanatismo violento". Como se a violência não fosse o estado inerente aos fanáticos, como se pudesse existir fanatismo tranquilo.
Essa passagem marca o revés da palavra.
Quatro meses antes ocorrera seu maior triunfo: ela fora abençoada com a honra suprema que o Terceiro Reich podia oferecer, a honra militar. Seria uma tarefa especial observar como a objetividade tradicional e a sobriedade quase elegante da linguagem militar oficial, em especial dos boletins diários, foram sendo gradativamente envolvidas pelo estilo empolado da propaganda de Goebbels. Em 26 de julho de 1 944 o termo "fanático" foi empregado pela primeira vez no boletim militar com sentido elogioso, referindo-se a algum regimento alemão. "Nossas tropas estão combatendo fanaticamente na Normandia." A distância que separa a atitude militar na Primeira e na Segunda Guerra Mundial nunca foi tão grande como aqui.
Um ano depois do colapso do Terceiro Reich é possível apresentar uma prova de que o termo fanatisch, palavra-chave do nazismo, nunca perdeu seu aspecto maléfico original, apesar do uso abusivo: enquanto por toda parte restos da LTI são assimilados pela linguagem atual, a palavra fanatisch desapareceu. O que nos permite concluir que, na consciência popular, a verdade se manteve viva: um estado de espírito confuso, próximo da doença e do crime, havia sido considerado como virtude suprema durante doze anos.
Victor Klemperer
1881 - 1960