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Uma literatura anfíbia


Amphibious, adj. [Gr. amphibios, living a double life; amphi-, on both sides + bios, life]. (...) 3. having two natures or qualities; of a mixed nature.

Webster's Dictionary

Graça Aranha é dos mais perigosos fenômenos de cultura que uma nação analfabeta pode desejar.

Modernismo Atrasado (1924) - Oswald de Andrade.


Venho de um país onde um segmento considerável da população ainda é composto de analfabetos. Isso traz consequências para a literatura e as artes ali produzidas. Nós, escritores, temos considerado que a publicação em livro das obras literárias que imaginamos é tão importante quanto a ação persuasiva que esse livro pode exercer no plano político, caso seja lido pelo restrito grupo social letrado que o consome, ou se noticiado ou comentado pelos meios de comunicação de massa. Na falta de melhor explicação descritiva, valho-me de uma metáfora: o nosso sistema literário se assemelha a um rio subterrâneo, que corre da fonte até a foz sem tocar nas margens que, no entanto, o conformam.

Outra consequência do analfabetismo que grassa entre os desprivilegiados, agora associado ao êxito extraordinário da mídia eletrônica, transcende o campo propriamente literário. Da noite para o dia, o escritor transforma-se em intelectual de plantão. Alcança o público que o seu livro não tem. O maior drama do analfabetismo no Brasil é o de ter ele servido de adubo para a mídia eletrônica do entretenimento, com o consequente desenraizamento cultural da imprensa escrita. O brasileiro aprendeu a escutar rádio e a ver televisão; poucos sabem ou querem ler. Essa afirmativa desconcertante não recobre apenas a camada dos desprivilegiados, ela virou consenso nacional a partir da ditadura militar de 1964.

Se num país de mais de cento e cinquenta milhões de habitantes é baixíssima a taxa de consumo per capita do livro, já a fala de quem exerce o ofício literário pode ser sintonizada sem graves empecilhos na mídia eletrônica - em especial na televisão educativa e na televisão a cabo, mas não exclusivamente. Concedida aos pares da mídia televisiva, a entrevista serve muitas vezes ao escritor de trampolim para discussões públicas sobre ideias implícitas na obra literária. O livro é raramente apreciado pela leitura. Consome-se a imagem do intelectual, assimilam-se suas ideias, por mais complexas que sejam. Destas derivam um motor civilizacional de baixíssima rotação, que impele o telespectador comum a enfrentar os problemas nacionais, sem ter de apoiar apenas nas agruras do cotidiano como alicerce para a revolta. Há, por outro lado, um perigoso culto da personalidade a rondar o aprender de escritor. Muitos jovens se sentem tão contentes com a imagem pública do intelectual, que logo se descuidam do artesanato literário, ou o abandonam de vez.

Se as margens do rio metafórico, a que nos referimos acima, passam ao largo do livro, elas acabam por se aproximarem indiretamente dele pelo viés da entrevista. Ela é o modo que o escritor encontrou para poder comunicar-se com um público mais amplo sem perder as prerrogativas excludentes do ofício que abraçou. Ao contrário do que sucede em sociedades com maior taxa de alfabetização e escolaridade, o livro de boa qualidade no Brasil pode ser o móvel da entrevista midiática, mas nunca é o seu fim. Em palavras mais contundentes, a programação da vende de livros de boa qualidade no Brasil não passa, ou passa muito pouco, pela mídia eletrônica. 

Livro e entrevista, folha de papel e tela, escrita e fala - estamos diante de situações concretas excludentes, que se dão como cúmplices pelo escritor doublé de intelectual e irreconciliáveis pelo grosso da população.

Com o correr das décadas, a prática da literatura no Brasil foi-se revestindo duma capa, ou seja, duma dupla meta ideológica. Ao explorar os meandros da observação direta dos acontecimentos cotidianos ou históricos e ao incentivar a reflexão sobre os observadores privilegiados, nossa literatura tanto configura a carência socioeconômica e educacional da maioria da população do país, quanto define, pelo exercício de uma forma ou de outra as formas clássicas de mando e governabilidade nas nações da América Latina.

Por um lado, o trabalho literário busca dramatizar objetivamente a necessidade do resgate dos miseráveis a fim de elevá-los à condição de seres humanos (já não digo à condição de cidadãos) e, por outro lado, procurar avançar - pela escolha para personagens da literatura de pessoas do círculo social dos autores - uma análise da burguesia econômica nos seus desacertos e injustiças seculares. Dessa dupla e antípoda tônica ideológica - de que os escritores não conseguem desvencilhar-se em virtude do papel que eles, como vimos, ainda ocupam na esfera pública da sociedade brasileira - advém o caráter anfíbio da nossa produção artística.

No século 20, os nossos melhores livros apontam para a Arte, ao observar os princípios individualizantes, libertadores e rigorosos da vanguarda estética europeia, e ao mesmo tempo apontam para a Política, ao querer denunciar pelos recursos literários não só as mazelas oriundas do passado colonial e escravocrata da sociedade brasileira, mas também os regimes ditatoriais que assolam a vida republicana. A atividade artística do escritor não se descola da sua influência política; a influência da política sobre o cidadão não se descola da sua atividade artística. O todo se completa numa forma meio que manca na aparência, apenas na aparência. Ao dramatizar os graves problemas da sociedade brasileira no contexto global e os impasses que a nação atravessou e atravessa no plano nacional, a literatura quer, em evidente paradoxo, falar em particular ao cidadão brasileiro responsável. Não são muitos, infelizmente.

Como consequência daquela dupla e antípoda tônica ideológica surge um vazio temático na nossa literatura que, a meu ver, acaba sendo preenchido pela grande quantidade de livros de literaturas estrangeiras que são traduzidos e consumidos no Brasil. Temos uma indústria editorial ágil e atualizada e um mercado do livro restrito e cosmopolita, guloso de novidade. Na singularidade da nossa indústria editorial e do nosso mercado do livro estão duas razões que justificam a importância que ainda se dá ao artesanato literário entre escritores que, sem a concorrência maciça das literaturas estrangeiras, há muito teriam abandonado a pretensão de fazer arte.

O vazio temático se refere à parca dramatização na literatura dos problemas dominantes na classe média, que fica espremida entre os dois extremos da sociedade. A literatura brasileira tem feito caricatura, tem passado por cima da complexidade existencial, social e econômica da pequena burguesia, afiando o gume da sua crítica numa configuração socioeconômica antiquada do país, semelhante à que nos foi legada pelo final do século 19. Se o Brasil republicano alcançou o progresso material, está muito longe do progresso social. Os bons escritores e intelectuais brasileiros são por demais sensíveis a essa desarmonia.

Não é por coincidência que, na nossa literatura, a classe média só toma consciência da sua situação específica sob a forma de desclassificação social. Não é por coincidência que o tema da decadência das grandes famílias rurais percorre o grosso da nossa literatura novecentista, levando alguns críticos a tomarem o título dum romance de Lúcio Cardoso - A crônica da casa assassinada - como metáfora e emblema do processo constituinte da classe média urbana no país. São os ricos oligarcas, despossuídos do poder econômico pela industrialização e transformados em funcionários públicos ou profissionais liberais pelo estado nacional em busca de modernização, que encontram nas ruas das metrópoles os ambiciosos estrangeiros e filhos de estrangeiros, firmes na alavancagem do Brasil industrial. Ex-oligarcas e imigrantes novos ricos, todos associados direta ou indiretamente ao capital estrangeiro, acabam por compor um matizado segmento médio nas grandes cidades, infelizmente pouco presente na nossa melhor literatura.

Silviano Santiago


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