O ensaio foi publicado em La Brochure Mensuelle | 1924
A evolução religiosa
Múltiplos trabalhos científicos lançaram maravilhosamente luz sobre a teoria do transformismo, essa teoria que constata o fato segundo o qual, na natureza, nada é imóvel ou imutável, que tudo evolui, modifica-se, transforma-se.
Pareceu interessante os espíritos estudiosos investigar se essa lei de evolução encontra sua aplicação no mundo das ideias, e parece desde já estabelecido que a ideia - assim como a matéria - atravessa uma incessante sucessão de estados e metamorfoseia-se perpetuamente.
Se admitirmos que a ideia é ela própria um reflexo interno da ambiência, uma adaptação ao temperamento de cada uma das sensações recebidas, das impressões ressentidas, dizer que, na natureza, tudo se transforma, é, ao mesmo tempo, avançar que a ideia - assim como todas as coisas e do mesmo modo - está submetida às leis do transformismo.
Todavia, como em muitos espíritos há dúvidas em relações às origens materiais de toda ideia, pensei que seria útil controlar a exatidão dessa tese que assimila a ideia ao ser organizado, aplicando a uma dada ideia uma rigorosa observação, e fiz a escolha da ideia religiosa, tanto por causa do papel considerável que ela desempenhou no passado, e do lugar que ainda ocupa em nossas preocupações, como em razão do despertar clerical ao qual assistimos.
Todo ser organizado nasce, desenvolve-se e morre. Trata-se de saber se encontramos na ideia religiosa três fases: o nascimento, o desenvolvimento e a morte.
Esses três períodos formarão a divisão de meu tema; em consequência, minha conferência compreenderá três partes:
Nascimento
Desenvolvimento
Desparecimento da ideia religiosa
Acrescentarei a isso algumas rápidas considerações de ordem geral e de atualidade.
Montes de livros foram escritos relativos à origem dos cultos, e se reuníssemos todos o que têm por objeto a pesquisa das condições e circunstâncias que lançaram em nosso planeta a ideia da existência de uma ou várias divindades, poderíamos formar facilmente uma das mais vastas bibliotecas conhecidas.
Sobre esse ponto: "Onde, quando, como a ideia de deus apresentou-se ao espírito humano?"; as opiniões são múltiplas e contraditórias.
Na ausência de documentos precisos, não há, não pode haver senão hipóteses. Eis aquela que me parece a mais crível; e seu eu apresso-me a declarar que se trata aqui apenas de uma hipóteses e de uma série de conjecturas, ser-me-á permitido, contudo, acrescentar que a probabilidade dessas conjecturas e dessa hipótese arrebata-me e, assim espero, ocupará vossa atenção.
A necessidade de saber, isto é, compreender, explicar os fenômenos no seio dos quais o indivíduo move-se; a necessidade de saber, não pelo simples prazer de ciência mas com o objetivo de utilizar as forças que o cercam e neutralizar aquelas que ameaçam a sua vida, em mim, em todos nós. Ela existe em graus diversos, todavia, mais ou menos, encontramo-la em todos.
O desenvolvimento incessante dos conhecimentos humanos é uma prova suficiente de que essa necessidade não é particular a nossas civilizações contemporâneas. Os vestígios já muito antigos dos primeiros esforços realizados por nossos ancestrais com vistas a conhecer, provam que essa necessidade remonta aos tempos mais recuados. É permitido, portanto, inferir dessas constatações que a necessidade de saber é inerente ao indivíduo tendo alcançado um certo grau de desenvolvimento.
Essa necessidade engendrou a ideia de deus, eis a hipótese. Eis agora as conjecturas que explicam muito plausivelmente a gênese dessa ideia.
Na origem, os fenômenos, pequenos ou grandes, guardavam, em relação aos ancestrais, aspectos de mistério. A natureza impenetrada, não tendo ainda entregado nenhum de seus segredos, fez com que o homem fosse, durante séculos, como um barquinho carregado pela tempestade e impotente a guiar-se. Entretanto, veio uma época em que a necessidade de procurar dar-se conta fez-se sentir imperiosamente. O ser humano podia permanecer eternamente desarmado ante as forças naturais, os elementos dos flagelos associados contra ele, os inimigos de toda natureza coligados contra sua existência?
Buscou encontrar explicações necessárias. Como sua completa ignorância não lhe permitia dar aos fenômenos observados uma explicação positiva e verificável, ele foi fatalmente conduzido a fazer intervir uma plêiade de atores sobre-humanos aos quais atribuiu prodigamente todas as forças.
Povoada de ruídos, cores, formas, imagens e impressões variáveis ao infinito, sua imaginação tornou-se o gradual receptáculo de milhares e milhares de ideias caóticas perturbadas, contraditórias, das quais todo o seu ser foi a presa forçosamente dócil. No vento que mugia, na tempestade que ribombava, no raio que eclodia, no sol que iluminava sua marcha, na noite que o envolvia de trevas, na chuva que caía, nosso ancestral viu ora seres amigos ou inimigos, ora a manifestação de malevolência ou de bondade de outros seres habitando regiões superiores.
Deus foi, portanto, de início, a personificação dos elementos e dos fenômenos naturais, ou, ainda, a materialização das causas encerrando esses fenômenos ou desencadeando esses elementos.
A sucessão dos dias e das noites, o transcurso das estações inspiraram nos homens a ideia de tempo. Ontem, hoje, amanhã pareceram-lhes como os três termos do tempo: o passado, o presente, o futuro. E como, enquanto morriam fatalmente os indivíduos, enquanto se sucediam as gerações, o vento continuava a mugir, a tempestade a ribombar, o raio a eclodir, o sol a luzir, a chuva a cair, eles conceberam seres vivendo um tempo considerável, e talvez sempre, consequentemente dotados de imortalidade.
Em suas marchas erráticas pelas estepes incomensuráveis, fizeram-se uma ideia do espaço sem limite e tiveram a impressão do ilimitado no espaço bem como no tempo.
Nascimento da ideia religiosa
A ideia de deus, sob essa dupla relação, tornou-se o prolongamento até ao absoluto das contingências observadas, das relatividades conhecidas.
No sol que fazia amadurecer os frutos, ativava a vegetação e inundava de claridade sua gruta ou sua cabana, o ancestral viu o amigo, o benfeitor, o Bem. No frio que interrompia o crescimento das plantas e entorpecia seus membros, na noite que povoava sua caverna de fantasmas ou de carnívoros ávidos de sua carne, em resumo, em tudo que ameaçava ou suprimia sua existência, ele encarnou o inimigo, o Mal.
E foi assim que inventou o Espírito do Bem e do Mal, divindades amiga e inimigas, deuses de luz e de trevas: deus e satã.
Mais uma vez, nada prova irrefutavelmente que as coisas tenham se passado assim; mas é permitido admiti-lo porque, se nenhum documento decisivo vem em apoio a esse série de hipóteses, nada também vem demonstrar sua inexatidão ou confirmar uma outra série de suposições.
Se necessário, eu poderia invocar as duas considerações que apresento aqui em favor de minha hipótese.
Não ignorais que existem em certos territórios do planeta seres que por seu tipo, sua conformação, seus hábitos, pela situação geográfica das regiões em que habitam, por sua linguagem, suas tendências, fazem reviver aos nossos olhos as épocas desde há muito desaparecidas. Ora, o relato dos viajantes que visitaram essas regiões denominadas selvagens, e viveram mais ou menos longamente no seio dessas civilizações primitivas, está em conformidade em todos os pontos com a opinião que acabo de emitir no que concerne ao aparecimento da ideia de deus, e as primeiras formas que ela revestiu.
Segunda consideração: também sabeis que a criança reproduz, com uma impressionante rapidez, é verdade, mas assaz exatamente, todos os anéis da cadeia ancestral. Pois bem, vede a criança: ela é ignorante, e, contudo, atormentada pela curiosidade; é crédula, apaixonada pelo fantástico e toda inclinada seja a forjar inteiramente, tão logo trabalha sua turbulenta imaginação, seres sobre-humanos, seja a ver nos elementos que a cercam esses próprios seres.
Assim, é irracional pensar que no transcurso de seus primeiros séculos, na época de sua infância, a humanidade tenha procedido como fantasiadora?
Eles enganam-se, ou melhor, enganam-vos impudentemente, esses impostores de todas as religiões que sustentam que deus criou o homem à sua imagem.
Vemos claramente agora que, bem ao contrário, foi a ignorância humana que deu origem aos deuses e criou-os à imagem do próprio indivíduo.
Sim, o homem criou deus à sua imagem, dotando os deuses de todos os atributos dos quais a ideia viera-lhe pela constatação de suas próprias forças e de suas próprias fraquezas, das qualidades e de seus defeitos, atribuindo a uns a bondade, a outros a maldade, aureolando aqueles de luz, condenando estes a mover-se na obscuridade, colocando-os todos em dadas condições de tempo e lugar, mas observando todas as suas divindades através da lente de aumento, levando para além do observado, do vivido, os atributos de toda natureza gratuitamente concedidos a esses filhos de seu cérebro.
Desenvolvimento da ideia religiosa
Concebemos sem dificuldade que a ideia de deus - de início puramente especulativa - não devia, não podia tardar a prolongar-se no campo social. Admitir a existência de uma divindade é reconhecer a necessidade de laços que unem a criatura ao criador e a religião (censura, religar) nada mais é que um conjunto de crenças e práticas, religando o homem a deus, estipulando os direitos deste e os deveres daquele.
Desde a origem, a ideia de religião encontra a ideia de superioridade encarnando-se nos bíceps mais robustos.
As tribos primitivas estavam em perpétuo estado de guerra. Mas os guerreiros logo compreenderam que sua força muscular só duraria um tempo, que eles não teriam sempre vinte e cinco ou trinta anos, que mais jovens viriam e os substituiriam. E, para conservar sua supremacia, a autoridade do soco aceitou com presteza o concurso da autoridade moral, essa nova força.
A coalizão era fatal. Produziu-se. É sob a forma do deus dos exércitos que ela manifestou-se. Viu-se um punhado de combatentes apoiados pelo fanatismo derrotar todo um exército, aterrorizado; porque os oráculos consultados pronunciaram-se contra ele.
O piloto, por sua vez, invocou o deus das tempestades, o lavrador o deus das colheitas, e logo havia uma multidão de deuses e semideuses enfrentando-se em suas manifestações.
Mas a necessidade de saber corroía o espírito humano. Nasceram pensadores que creram com razão que a onipotência não podia dividir-se, que não poderia haver conflito nisso, rivalidade entre os todos poderosos. E o monoteísmo emanou dessas observações. Surgiu o cristianismo. Em seus começos, foi uma corrente popular, uma luta dos fracos contra os fortes, e se quiséssemos estabelecer um paralelo entre a época em que jesus cristo, nascido em um estábulo, de pais pobres, ele próprio pobre, pregava com eles em favor dos deserdados, e a época que hoje atravessamos em que homens de palavra ardente reivindicam maior vem estar, mais justiça, mais igualdade, ser-nos-ia possível demonstrar sua analogia surpreendente.
Durante mais de dois séculos, o cristianismo perseguiu sua obra popular, empurrando os oprimidos à revolta, fazendo a guerra aos ricos. Vê-se, também, o patriciado romano dar como alimento às feras milhares e milhares de cristãos.
Mas homens imiscuiram-se nesse movimento imprimindo-lhe uma nova orientação. Tirando partido do misticismo da época, compreendendo que os tempos do realismo ainda não haviam chegado, eles despojaram insensivelmente jesus cristo de sua humanidade, divinizaram-no, converteram-no em um fundador de nova religião e, crédulos, ignorantes, fanáticos, os discípulos do homem de Belém afastaram-se pouco a pouco das reivindicações imediatas e das preocupações terrestres; substituíram pela resignação e pelo amor à cruz o espírito da revolta que os tinha até então animado; passaram a aspirar tão somente a um mundo de beatitudes eternas, pondo em prática essa frase das Escrituras atribuídas a jesus cristo: "Meu reino não é deste mundo".
E quando Constantino percebeu que o cristianismo, matador de cólera e fomentador de submissões, era de natureza a consolidar seu poder, estendeu-lhe a mão e a paz foi feita. A partir deste momento a ideia cristã assumiu uma extensão extraordinária, um desenvolvimento vertiginoso. Ela obteve o ouvido dos Grandes, deu conselhos aos monarcas. Diante dela as frontes mais altaneira curvaram-se.
A partir do momento que a vida não era mais que uma curta passagem nesse vale de lágrimas que era a terra, só uma coisa importava: a salvação de nossa alma. O progresso era um crime, nenhuma penalidade era assaz severa para reprimi-lo.
Viu-se a ideia religiosa associar-se a todos os abusos, a todas as explorações. Os papas dominam os reis; os bispos comandam os senhores. À voz inflamada dos Pedro, o Eremita, dos São Bernardo e dos monges que falam em nome do Cristo, milhões de combatentes acorrem, através da Europa rumo ao Oriente, à conquista do túmulo de Jesus e das terras pisadas pelo Messias.
Gerações de fiéis cobre o Ocidente de catedrais magníficas, gigantescas basílicas. A música, a poesia, a escultura, o teatro, a pintura, a eloquência, a literatura, todas as manifestações artísticas, penetradas de catolicismo, retraçam as grandes linhas da Legenda bíblica. Os espíritos estão sob o encanto, as vontades sob o jugo. A humanidade treme; ela adora... Deus triunfa! É o apogeu.
Desparecimento da ideia religiosa
Mas a necessidade de conhecer continua sua obra.
Através dos séculos, as ciências progrediram. Saído do longo e doloroso período de tateio, o espírito humano começa a orientar-se resolutamente para a luz. Audaciosas naturezas empunharam orgulhosamente a tocha da razão. As vãs explicações de outrora já não bastam à ardente curiosidade desses pesquisadores. Eles sacodem impacientemente o fardo das superstições.
A física, a química, a história natural, a astronomia explicam em parte esses fenômenos que enchiam de temor e admiração os ancestrais. As velhas tradições estão estremecidas. A luta torna-se ardente entre aqueles que querem saber e os que se cristalizam na fé. O Dogma e a Razão põem em confronto um deus sem filosofia e uma filosofia sem deus.
As concepções antigas do universo são reviradas totalmente.
As investigações dos cientistas, secundadas por poderosos aparelhos conduzidos pelo espaço, põem o mundo terrestre em comunicação com as leis da mecânica celeste.
As tendências materialistas aparecem, afirmam-se, desenvolvem-se, atacando o espiritualismo infantil e grosseiro das épocas precedentes.
A hipóteses de deus está cada vez mais distante. Um deus que recua incessantemente em ser deus.
Uma irresistível corrente leva ao ateísmo nossas gerações decepcionadas.
Quanto mais um homem sabe, menos disposto fica a crer, e perguntamo-nos como nossas gerações hesitam ainda em livrar-se de uma fé que parte.
A ideia religiosa só sem mantém pela força da velocidade adquirida. Há igualmente impressões de infância das quais não se pode livrar-se bruscamente. Enfim, as ideias e as crenças são como as velhas amigas com as quais se viveu trinta, quarenta anos e às quais mil lembranças ligam-vos, e que não se poderia abandonar brutalmente.
Não é extraordinário, pois, que despendamos tanto tempo para deixar-nos levar pela vida materialista.
Todavia, é incontestável, os deuses vão-se, e encontramos a confissão disso pela própria pena de nossos adversários.
Últimos avatares do clericalismo
Essa decrepitude da ideia religiosa produziu dois avatares. No campo político, é a reconciliação da República com a igreja, de toda necessidade monarquista.
No campo econômico, é o socialismo cristão.
Sentindo o terreno fugir sob seus passos, a Igreja manifestou adesão oficial à República por intermédio do próprio papa, e encontramos na eleição de Brest um curioso exemplo nesse sentido.
Nessa região essencialmente monarquista, dois candidatos opunham-se: o conde de Blois, partidário do trono e da igreja, e o abade Gayraud, partidário unicamente da igreja. Foi este último a quem, com todas as suas forças e abertamente, o clero apoiou.
Não é essa uma concessão feita pela igreja que, sentindo-se perecer, pôs em seu rosto uma máscara republicana?
Essa conversão não pode ser sincera, pois a igreja admite um deus diante da vontade do qual tudo deve inclinar-se e o poder deve vir de cima, enquanto a República entende a vontade de todos exprimida e o poder vindo de baixo.
Não contente por se fazer republicano, o papa exibiu em sua tiara uma insígnia socialista. Eis o que não poderíamos suportar.
Que vos agrade, a vós clericais, entrar na república e que os republicanos admitam-vos entre eles, pior para eles! Mas que vós manifesteis a pretensão de resolver a questão social, nós não vos permitiremos fazê-lo.
O que fizestes durante os longos séculos de vossa dominação exclusiva? Vós vos aliastes aos patrões, aos nobres, aos reis. Vós voz fizestes cúmplices de todas as iniquidades, de todas as explorações. E, hoje que não sois mais nada, que não podeis fazer mais nada, tendes essa ideia de interessar-vos pelos vencidos da luta social?
Nada fareis, pois nada podeis fazer.
Irei mais longe. Não tendes o direito de tentar o que quer que seja nesse sentido.
Tudo o que existe é pela vontade de deus. É porque deus quis que há pobres e ricos, explorados e exploradores, que uns morrem de fome enquanto outros morrem de indigestão, e seria sacrilégio de vossa parte desejar mudar isso o que quer que seja, criminoso querer corrigir a obra do criador cujos desígnios são impenetráveis.
Temos o direito de queixar-nos: vós, o dever de resignar-vos, confusos, tristes, mas submetidos!
Terreno de entendimento? Conclusão
Há, contudo, um meio de entender-nos. Dissestes, inclusive: "Os bens terrestres são perecíveis e desprezíveis enquanto os bens celestes serão um gozo, uma felicidade que não terá fim". Pois bem, não disputaremos convosco os segundos, mas nos deixai os outros. Porquanto nos será fácil fazer da terra um paraíso, o ódio dará lugar à bondade e o vale de tormentos a um Éden. E é chegada a hora de fazer tudo isso.
Digo aos republicanos, aos socialistas: cuidado! Esses homens de quem retirastes a fé querem obter legítimas satisfações. Eles não querem mais vagas promessas. Precisam de soluções imediatas. Quanto mais esperardes, mais as soluções violentas impor-se-ão!
Do absurdo criminoso das religiões
Quem somos? De onde viemos? Aonde vamos? E o mundo que nos cerca, de onde ele procede? O rigoroso encadeamento dos fatos dos quais a natureza dá-nos o incessante e regular espetáculo, é o resultado do acaso ou de um plano magnífico emanado de uma inteligência infinita, servida por uma vontade todo poderosa?
Esses questionamentos, de uma importância capital, há séculos a humanidade os faz.
Segundo a resposta que se dá a eles, a vida é uma quantidade negligenciável ou de extrema importância.
Esses problemas ainda não foram resolvidos, e, talvez, uma certa obscuridade planará sempre sobre eles.
Entretanto, se a ciência ainda não chegou a dissipar toda dúvida sobre vários pontos, ela conseguiu eliminar do número das conjecturas que a razão não pode admitir a hipótese "deus" que as épocas remotas de ignorância haviam engendrado.
O estado atual da ciência não permite mais, senão aos espíritos limitados ou crédulos, o refúgio na fé para nela encontrar os dados necessários à solução desses problemas temíveis.
Suponhamos que, por uma dessas noites extraordinárias que a cintilação das estrelas maravilha nossos olhos, dois personagens caminham e trocam impressões sugeridas por esse grandioso espetáculo.
Suponhamos que nossos dois personagens sejam uma criança e um padre.
A criança é dessa idade em que o espírito atormentado pela curiosidade não cessa de fazer brotar dos lábios incontáveis perguntas. Ela interroga o padre a respeito de como e por que esses esplendores infinitos movem-se no espaço.
O padre responde-lhe:
"Minha criança, todos esses mundo que provocam justamente vossa admiração são a obra do ser supremo. É sua infinita sabedoria que regula sua marcha, sua todo-poderosa vontade que mantém a ordem e assegura a harmonia no universo. Nós também somos a obra desse criador. Ele condescendeu fazer-nos conhecer, por intermédio dos seres que escolheu, as vias nas quais ele quer que caminhemos. Conformar-se a essas vias é o bem, a virtude. Afastar-se delas é o mal, o pecado. A virtude prepara uma eterna beatitude, o pecado [ilegível] castigo [ilegível] fim. Revelador e providência, tal é esse deus a quem devemos todos".
Mais eis que surge um terceiro personagem no passeio. Este é um materialista, um ateu, um pensador, livre. Toma parte na conversa. Ele replica à criança que a ordem que reina na natureza é o resultado das forças que regem o conjunto dos seres e das coisas. Afirma que deus é apenas uma invenção emanada da imaginação ignorante de nossos ancestrais; que não existe providência etc.
A discussão que entabulam o crente e o ateu é só o resumo das ardentes controvérsias provocadas há séculos pela questão religiosa.
É essa discussão que minha conferência propõe-se a condensar colocando sob os olhos de meu auditório todas as peças do litígio.
Durante essa discussão esforçar-me-ei para estabelecer
1. Que a hipótese "deus" não é necessária;
2. Que ela é inútil;
3. Que ela é absurda;
4. Que ela é criminosa.
Os dois primeiros pontos reportar-se-ão mais especialmente ao deus-criador; o terceiro ao deus-redentor; e o quarto ao deus-providência.
A hipótese "deus" não é necessária
As provas em favor de leis que regem as relações de todas as coisas e matam simultaneamente a autonomia de cada ser e a dependência mútua ou a solidariedade (a harmonia) no conjunto, essas provas são em nossos dias tão abundantes e tão decisivas que os mais crentes dos crentes renunciaram a contestá-las.
Mas com essa flexibilidade de dialética que o caracteriza e que deu origem a uma casuística especial, o espírito religioso refugia-se atrás do raciocínio que ora apresento:
"Há leis naturais às quais obedecem os mundos dispersos no espaço. Seja. Mas quem diz Lei diz legislador. Além disso, o legislador deve estar revestido de uma força superior e anterior às forças que sua lei submete. Existe, pois, um Legislador supremo".
É preciso confessar que um bom número de pessoas acreditou ver nessa argumentação uma consideração decisiva em favor da hipótese "deus" proclamada necessária.
O erro dessas pessoas é facilmente explicável. Ele provém dessa analogia segundo a qual hábeis sofistas buscam criar entre as leis naturais que regem a matéria e as leis humanas.
O raciocínio desses casuístas é o seguinte:
"As leis que regem as sociedades humanas necessitaram da intervenção do legislador. Isso e aquilo implicam-se fatalmente. Em consequência, a existência das leis que governam os astros e os planetas comporta rigorosamente a existência de um Legislador supremo, superior e anterior a essas leis, e é esse Legislador que denominamos deus".
Pois bem, essa analogia é radicalmente errônea.
Não há qualquer similitude entre as leis naturais e as leis humanas.
Primeira diferenciação. As leis naturais são exteriores (anteriores e posteriores) à humanidade. Sabe-se e concebe-se que bem antes do surgimento em nosso globo das primeiras formas humanas, as leis da mecânica celeste aplicavam-se aos nosso planeta e a todos os corpos gravitando no espaço. Sabe-se e concebe-se igualmente que, se acontecer que, por uma causa qualquer, as condições de existência necessárias à espécie humana desapareçam da terra que pisamos, os astros e nosso próprio pequeno planeta continuarão sua evolução secular sem que ocorra a menor modificação.
Quanto às leis humanas, elas são - a palavra indica-o - inerentes à humanidade. São legislações, isto é, um conjunto de prescrições e interdições formuladas por humanos.
Segunda diferenciação. As leis naturais têm um caráter de constância de imutabilidade. É a característica de todas as leis relativas à física, à química, à história natural, à matemática.
Todas as leis humanas, ao contrário das precedentes, - porque feitas por humanos que passam e aplicáveis a seres que também passam - são essencialmente transitórias, fugidias e, inclusive, contraditórias.
Terceira diferenciação. As leis naturais não suportam qualquer infração. A infração seria o milagre, e está provado que o milagre não existe, nem pode existir.
Em contrapartida, os códigos humanos são a todo instante violados. As forças sociais, polícia, magistratura, etc. atestam que inúmeras são as infrações que sofre a Legislação humana.
Quarta diferenciação. As leis naturais registram os fatos sem determiná-los. O piloto, por exemplo, consulta a bússola e não é absolutamente para obedecer às suas injunções, mas porque age segundo a natureza; a agulha magnetizada, dirigindo-se sensivelmente para o norte, permite ao navegador orientar-se. Enquanto as leis humanas regulamentam os fatos sem, na maioria das vezes, registrá-los ou levá-los em conta. É assim que, sem levar em conta os desejos que nos movimentam, os impulsos que nos animam em virtude da irresistível lei de atração dos dois sexos entre si, o legislador humano regulamenta as relações sexuais, classifica-as em permissões e interdições, categoriza-as em legítimas e ilegítimas.
Poder-se-ia acrescentar ainda a essa lista contradições ou diferenças que existem entre as leis naturais e as leis humanas. As precedentes bastam e permitem concluir que a analogia com a ajuda da qual se busca lançar a confusão nos espíritos é absolutamente inexata, e que as consequências que se quer dela extrair são, sob todos os pontos, inadmissíveis.
Assim, considerada desse ponto de vista, a hipótese de um "deus" legislador supremo não é necessária.
"Mas, então", objetam os deístas, "como explicar o Universo? Dizei-nos de antemão quem fez a matéria e, em seguida, de onde lhe vêm essas forças que a movimentam e mantêm os corpos em equilíbrio no tempo e no espaço?"
Quem criou a matéria
E, antes de tudo, quem criou a matéria? Eis a minha resposta.
Pela imaginação traçai uma linha indefinida através do espaço. Tentai medir seu comprimento. Esgotai a linguagem da matemática. Adicionai centenas de bilhões a bilhões de bilhões. Multiplicai esse formidável total por uma soma trilhões de vezes mais fabulosa. Dizei-me se conseguireis fixar a extensão dessa linha imaginária através do espaço? Podeis dizer: "Eis o ponto A de onde ela parte; eis o ponto B onde ela chega?" Não, não podeis fazê-lo. O espaço é sem limite e, em todos os cantos e recantos desse incomensurável espaço, encontramos a matéria em um estado qualquer: gasoso, líquido ou sólido.
A matéria está em toda parte.
Esse "ilimitado" no espaço implica "o ilimitado" no tempo. Todos os "sem limites" são solidários. E, de fato, traçai nos séculos que formam o passado uma linha imaginária. Prolongai-a nas sucessões das eras que constituem o futuro. Ainda neste caso, acrescentai uns aos outros os números os mais fantásticos. Podeis, remontando ao curso das eras, encontrar o ponto de partida, o princípio, a origem? Podeis, remontando aos séculos indefinidamente chegar a seu termo? Não.
A matéria está não apenas em toda parte, mas sempre.
Essas qualidades de "indefinido" nós as encontramos ainda em todas as outras propriedades da matéria: o volume, por exemplo.
Suponde um volume colossal de matéria. Parece-vos razoável pretender que se deve permanecer aí? Que não se pode acrescentar mais nada?
Fazei agora a operação inversa: dividi uma parte em cem, em mil, em um milhão de partes. Tereis chegado ao extremo limite dessa divisibilidade? Não podeis mais fracionar?
Assim, também não há limite na divisibilidade da matéria.
Em consequência a essa primeira questão: "Quem fez a matéria?", respondo que essa questão só teria razão de ser se fosse possível conferir a essa matéria uma origem, um começo, um limite. Ora, está constatado que essa atribuição é impossível. Assim, não há necessidade de recorrer a uma conjectura à qual se atribuiria um papel que não é necessário.
Desse ponto de vista, também, a hipótese "deus" não é necessária.
A hipótese "deus" é inútil
As constatações que precedem adquiriram hoje tal força e generalizaram-se tão bem que os deístas não ousam mais contradizê-las abertamente. Mas seria conhecê-los mal imaginar que eles desarmam-se por isso.
"Pois bem! Que seja!", dizem.
"O espaço e o tempo são ilimitados. Reconhecemos igualmente que o movimento está em toda parte. Mas de onde vem esse movimento? Qual é a força que o incorporou na matéria? Essa força que não apenas movimenta os corpos, mas ainda ordena harmoniosamente os movimentos, eis o que chamamos de deus. Os corpos não se impulsionam sozinhos. Foi preciso que o impulso tenha-lhes dado; a força comunicada. Esse empurrão inicial, pondo em movimento todos os mundos, não teria sido dado por um ser qualquer?"
É sempre a secular querela entre espiritualistas e materialistas que, sob uma forma levemente rejuvenescida, reproduz-se aqui.
De onde vem o movimento
Crendo que, por natureza, a vil matéria é inerte, os deístas avançam que se a percebemos movimentada - o que é inquestionável - é porque uma energia exterior à matéria originalmente, penetrou-lhe, instalou-se nela e impulsionou-lhe a força que lhe faltava.
Ora, encontramos na natureza um único fenômeno que esteja em condições de dar algum valor a essa opinião?
Absolutamente nenhum; e todas as observações que fazemos tendem a afirmar que o movimento é uma das propriedades inerentes à matéria e ele próprio matéria. Vão esforço explorar o espaço, sondar as profundezas do oceanos ou escavar as entranhas do solo; não apenas encontramos em toda parte matéria, mas a encontramos constantemente em movimento.
Esse caráter de universalidade da força no espaço bastaria para permitir-nos concluir pela imanência dessa força em relação ao tempo.
Essa imanência de milhares e milhares de constatações vem estabelecê-la. A teoria da evolução consagra o transformismo incessante da matéria; ela repousa nas metamorfoses ininterruptas que sofrem os seres e as coisas; ela serve para explicar o perpétuo devir. Essa modificação sem interrupção, essa sucessão de estados tão lenta quanto certa, não é irrefragável prova da continuidade do movimento, a atestação sem réplica da presença do movimento nas eras mais remotas, como a certeza da mesma presença nos futuros mais longínquos?
Quem não conhece o princípio ao qual, em mecânica, deu-se o nome de "persistência da força"? Quem não sabe que a força, o movimento jamais desaparecem, jamais diminuem; que há simplesmente mutação, quer dizer, mudança na natureza e nos efeitos do movimento, mas que, se é aqui calor, ali luz, acolá eletricidade, todo movimento transmite-se a despeito dos aspectos diversos sob os quais ele se revela, mas mais uma vez, jamais sofre a mínima diminuição.
É a aplicação no movimento dessa verdade em química: "Nada se cria, nada se perde".
Consequentemente, pode-se afirmar que o movimento é uma propriedade da matéria; que não se pode conceber esta sem aquele e que se é impossível atribuir ao movimento uma origem, porquanto não se pode observar a matéria sem movimento bem como o movimento sem matéria; que, enfim, assim considerada como tendo imprimido à matéria, pelo impulso inicial, o movimento original, a hipóteses "deu não tem qualquer utilidade.
A ordem no universo
Quanto ao que nosso entendimento denomina "ordem e harmonia do Universo", isso quer dizer que qualificamos como ordenamento o que está de acordo com as observações que devemos fazer. A sucessão regular dos dias, das noites, das estações, a repetição prevista dos mesmos fenômenos, a constatação dos mesmos efeitos dando sequência às mesmas causas, em resumo, a observação sempre idêntica a ela mesma de resmungos rigorosos e metódicos dos mesmos fatos: eis o que denominamos ordem.
Toda mudança, toda infração a esses tipos de regras emanadas da multiplicidade e da constância de nossas constatações pessoais e das observações gerais constitui a desordem.
Em resumo, ordem e desordem sendo dois termos cuja significação é exclusivamente subjetiva, considera-se como ordem tudo o que é conforme às noções que fizemos ou que nos inculcaram; considera-se como desordem tudo o que é contrário a isso.
Em consequência, a harmonia que observamos no cosmos procede de nosso espírito. E essa admiráveis qualidades de ordem que nos paralisam em contemplação ante a regularidade da organização universal, foi nosso intelecto que teve a generosidade de dotar a natureza delas.
A ordem e a desordem são coisas que intrinsecamente não existem. Nos mundos solares que enchem o espaço, não há ordem nem desordem; há pura e simplesmente corpos, que em razão de seu volume, de sua densidade, de suas propriedades respectivas e de sua distância movem-se em condições sempre as mesmas que nos foi permitido observar. Desse modo, não há ordem no grande todo senão aquela que nosso entendimento introduziu. O fator da ordem, da harmonia, não seria, pois, deus, mas o homem!
A hipóteses "deus" é absurda
Seguros de que a ciência está longe de ter tudo explicado e imaginando-se que fora da conjectura de uma criação, as origens do mundo permanecem obstinadamente impenetráveis, os crentes recorrem, para explicar essas origens, à hipótese de um ser eterno cuja onipotência teira tudo criado.
É necessário explicitar melhor o valor desse termo religioso "criar".
Criar, não é tomar um ou vários elementos já existentes e coordená-los; não é reunir materiais e dispô-los de uma certa maneira. O relojoeiro, por exemplo, não cria um relógio; o arquiteto não cria uma casa. Criar, é dar a existência ao que não existe, é extrair do vazio, é fazer algo do nada.
Pois bem! A hipóteses de uma criação qualquer é puro absurdo. Isso porque é inadmissível que do nada se possa extrair o que quer que seja; e o célebre aforismo formulado por Lucrécio: "Ex nihilo nihil" é e permanece a expressão de uma invencível exatidão.
Se, portanto, a matéria não pôde ter sido extraída do nada, é porque ela sempre existiu, e, neste caso, é preciso perguntar-se, na hipótese de um ser criador, onde se encontrava essa matéria.
Ela só podia estar nele ou fora dele.
No primeiro caso, deus cessa de ser um puro espírito: a matéria estava nele; ela residia em seu ser; ela era parte integrante de sua personalidade; assim como ele, ela é eterna, infinita, todo-poderosa, pois o absoluto não comporta e não pode comportar nenhuma contingência, nenhuma relatividade. Consequentemente, a matéria é sua autocriadora e a hipóteses de uma imaterialidade, tendo extraído de si mesma elementos materiais, torna-se estúpida.
No segundo caso, quer dizer, se a matéria não estava em deus, mas fora dele, ela era-lhe coexistente. Ela não tem mais origem que ele; é como ele, eterna; assim, ela não foi criada, e a conjectura de uma criação torna-se absurda.
Em ambos os casos, é a incoerência, a desrazão!
Mas onde o absurdo da criação cristã eclode de um modo talvez mais tangível, porque ela apresenta-se a nós sob uma forma menos abstrata, é na revelação.
A revelação
A ideia de uma criação chama fatalmente aquela de uma legislação suprema, e a ideia de uma legislação suprema implica necessariamente aquela de uma inevitável sanção.
Isso é tão exato que não há sequer uma única religião que não comporte simultaneamente prescrições e proibições constituindo a lei de deus, e um sistema de recompensas e castigos destinados à sancionar essa lei.
É preciso acrescentar que, para erigir-se como juiz supremo, torna-se necessário que o mestre faça-nos conhecer sua lei, a fim de que saibamos o que deve ser feito para merecer a recompensa, o que deve ser evitado para escapar do castigo.
A revelação é o ato pelo qual o criador, princípio de toda justiça e de toda verdade, ter-nos-ia feito conhecer sua lei. Ele seria servido, a título de intermediários, pelos seres de predileção: profeta e apóstolos que a religião cristã apresenta-nos como inspirados por deus.
É, pois, pela boca desses personagens inspirados que o verbo divino ter-se-ia comunicado, e é nas escrituras ditas sagradas que estaria consignada a revelação.
Pois bem! O que nos ensinam as Escrituras no que diz respeito às origens do mundo em geral e do homem em particular? Elas ensinam-nos coisas que a ignorância de nossos pais pôde tomar por verdades, mas que já não é permitido crer hoje, de tanto que estão em desacordo com as afirmações da ciência contemporânea.
Ensinam-nos que, saindo bruscamente de sua secular inação, o denominado deus teve a fantasia de dar origem ao que já existe e criou a totalidade em seis dias.
Em que momento o eterno fez essa obra? Quando se rebaixou, como diz Malebranche, até condescender fazer-se criador? - Em um dado momento do tempo. Eis o que afirma o gênesis, o que implica, por sinal, o termo e a ideia de criação. Então, deus teria cruzado os braços durantes toda a eternidade anterior?
Mas o que é uma eternidade cortada em duas? como admitir o grande geômetra dormindo toda uma primeira eternidade, depois despertando, de repente, para evocar do nada esse universo ausente até então, para preencher e povoar o vazio insondável para dar a essa morte universal a vida universal?
A contradição é flagrante. O ser necessário não pôde permanecer um só momento inútil. O ser ativo e eterno não pôde deixar de agir eternamente. Devemos, portanto, admitir um mundo eterno como criador. Mas admitindo essa coexistência, confessa-se que o universo não foi absolutamente criado, que a criação é um nonsense, uma impossibilidade. As escrituras situam o dilúvio 700 anos após a criação e 3700 anos antes do nascimento de jesus cristo, ocorrido há 1900 anos. Da soma desses três números, resulta que a criação remontaria a 6300 anos. Tal é a certidão de nascimento que aprouve ao altíssimo emitir para a sua obra e comunicar-nos pela revelação.
Ora, está estabelecido por cálculos rigorosamente exatos que as transformações geológicas que revolucionaram nosso próprio planeta remontam a milhares e a centenas de milhares de séculos. Quem não sabe, por exemplo, que uma de nossas mais altas matas atuais só produzindo - reduzida em hulha - uma fina camada de 15 milímetros, calculou-se que, para formar estratos profundos de uma bacia hulhífera como aquela de Northumberland, foram necessários não menos de nove milhões de anos? E, contudo, a formação hulhífera é apenas um dos cinco ou seis grandes períodos que precederam a época histórica, o surgimento do homem sobre a terra.
Quanto a essa última época, as provas abundam que ela remonta a vários milhares de séculos. Em muitos lugares foram coletadas ossadas humanas enterradas em profundidades consideráveis ao lado de sílex, cerâmicas e outros objetos mesclados a restos de grandes paquidermes. Torna-se evidente, pelo cálculo de proporção, que o homem, contemporâneo dos elefantes e dos rinocerontes, já existia há aproximadamente trezentos mil anos.
Falarei dessa ridícula lenda de adão e eva no paraíso terrestre, em estado de perfeita felicidade, caídos repentinamente em desgraça por terem infringido a proibição de degustar o fruto proibido? Falarei de Josué parando o sol? Falarei de Jonas que teria permanecido no ventre de uma baleia, quando já foi demonstrado que o esôfago desse animal não permite a passagem de um corpo humano? Falarei da atravessia e pés secos do Mar Vermelho? Falarei?
Não! É demasiado ridículo. O absurdo é por demais flagrante. Que postura para um deus, para o princípio e a fonte de toda verdade e de toda ciência essa exibição de estupidez, esse acúmulo de mentiras ou erros! não insistamos.
A hipótese "deus" é criminosa
As considerações que me restam a desenvolver dizem respeito a deus providência.
Denomina-se providência o governo do mundo pelo deus que o criou.
Salta aos olhos que tal governo, exercido por um ser que prevê tudo, que sabe de tudo, que pode tudo, não deveria suportar nenhuma desordem, nenhuma insubordinação.
Ora, o mal existe: mal físico e mal moral, e a existência do mal é radicalmente inconciliável com aquela de uma providência.
A providência e o mal
Sofremos intempérie das estações, erupção de vulcões, tremores de terra, tempestades, ciclones, incêndios, inundações, secas, penúria, enfermidades, flagelos, ferimentos, dores, morte etc, etc. É o mal físico.
Somos testemunhas ou vítimas de inumeráveis injustiças, violências, tiranias, espoliações, assassinatos, guerras. Em toda parte a hipocrisia vence a sinceridade, o erro derrota a verdade, a cupidez sobrepõe-se ao desinteresse. As ciências, as artes, que uso delas fazem os governos, espécies de providências terrestres? Fazem com que sirvam à paz, ao bem-estar, à felicidade geral? A história, repleta de crimes atrozes e pavorosas calamidades, é apenas o relato das desgraças da humanidade. É o mal moral.
De onde emana o mal?
Se se admite a existência de deus, admite-se, ao mesmo tempo, que tudo o que existe procede dele. É, pois, deus, esse ser de verdade que engendrou o erro; é deus, esse princípio de justiça que deu origem à iniquidade; deus, essa fonte de toda bondade que engendrou o crime!
E é esse deus, centro e foco da dor e da perversidade, que eu deveria respeitar, servir, adorar?
O mal existe, ninguém pode negá-lo.
Pois bem! Das duas uma: ou deus pode suprimir o mal, mas não quer fazê-lo; neste caso, sua potência permanece inteira, mas, se ele permanece poderoso, tornar-se cruel, feroz, criminoso, ou então deus quer suprimir o mal, mas não pode fazê-lo e, assim, cessa de ser feroz, criminoso, mas se torna impotente.
Esse raciocínio sempre foi e será para sempre sem réplica.
O conceito e o sentimento que temos da equidades não nos dizem que quem quer que veja cometer-se sob seus olhos uma ação culpada, e podendo facilmente impedi-la, permite que seja realizada, torna-se cúmplice dessa ação, e torna-se criminoso do mesmo modo que aquele que a perpetrou?
Esse deus, que, tendo em vista sua onipotência, poderia impedir sem esforço o mal e seus horrores e que não intervém, esse deus é criminoso, é de uma ferocidade sem limites. O que digo? Só ele é feroz, só ele é criminoso. Porquanto só ele é capaz de desejar e poder; só ele é culpado e deve assumir todas as responsabilidades.
Deus e a liberdade humana
É verdade que essa leveza que caracteriza o espírito religioso e com a ajuda desses sofismas capciosos que fizeram da raça dos padres os casuístas mais perigosos, os deístas objetam que o mal não é responsabilidade de seu deus, mas do homem a quem deus, em sua soberana bondade, teria concedido esse atributo: a liberdade, a fim de que, capaz de discernir entre o bem e o mal e decidir-se em favor do primeiro em vez do segundo, o homem fosse juiz de suas ações e conhecesse a recompensa ou a pena ligada à prática do bem ou do mal.
Essa objeção não tem valor.
E, de início, se supusermos por um instante que deus existe, e que ele condescendeu em conceder-nos a liberdade, não se poderia ignorar que, essa liberdade proveniente dele, é ela que, pela ação, afirma-se no mal bem como no bem. Pode-se explicar que, dessa parcela de liberdade arrancada do ser soberanamente livre, tão cruel uso seja feito sem que a liberdade divina tenha contido, em estado potencial - tal como a semente contém a colheita - essa safra de torpezas, vilanias, sofrimentos?
Se a mentira, a ignorância, a maldade, o crime provém dessa liberdade com a qual deus nos gratificou, o próprio deus é mentiroso, ignorantes, perverso e criminoso.
Mas conciliar essas duas coisas: a existência de deus e a liberdade humana é impossível. Se deus existe, só ele é livre.
O ser que depende parcialmente de um outro só é livre parcialmente; aquele que está sob a completa sujeição de um outro não goza de nenhuma liberdade. Ele é o bem, a coisa, o escravo deste último.
Assim, se deus existe, o homem nada mais é que joguete de seu capricho, de sua fantasia. Aquele a quem nada escapa de nossas intenções e ações, aquele que mantém em reserva torturas sem fim prontas a punir o temerário que violasse suas prescrições ou suas proibições, aquele que, mais rápido que o raio, pode atingir-nos mortalmente a qualquer hora, a qualquer segundo, só aquele é livre, porque só ele propõe e dispõe. É o senhor; o homem é seu escravo.
Em todo caso, o que dizer da selvageria desse juiz que, prevendo todas as nossas maquinações e estas acontecendo fatalmente, em conformidade com a presciência divina, faz chover sobre nós torrentes de fogo e precipita-nos na eterna estada dos tormentos inexprimíveis para castigar uma hora de desvio, um minuto de esquecimento?
De todos os torturadores, esse juiz é o mais implacável, o mais iníquo, o mais cruel!
Os crimes da religião
Surpreendei-vos em seguida com o mal que as religiões causam à humanidade, suplícios dos quais elas cumularam a terra?
Criminosa do ponto de vista metafísico, a ideia de deus é-o ainda mais - se possível - do ponto de vista histórico.
Pois deus é a religião.
Ora, a religião é o pensamento encantado. O crente tem olhos e não deve ver; tem ouvidos e não deve ouvir, tem mãos e não deve tocar; tem um cérebro e não deve raciocinar. Ele não deve reportar-se a suas mãos, a seus ouvidos, a seus olhos, a seu intelecto. Em todas as coisas, ele tem por dever interrogar a revelação, inclinar-se ante os textos, conformar seu pensamento aos ensinos da ortodoxia. A evidência, ele trata-a como impudência blasfematória quando ela coloca-se como adversária de sua fé. A ficção e a mentira ele proclama-as verdade e realidade quando servem aos interesses de seu deus.
Não tentai fazer-lhe constatar a inépcia de suas superstições, ele replicará fechando-vos a boca, se ele tiver a força, injuriando-vos covardemente pelas costas se ele é impotente.
A religião arrebata a inteligência recém-desperta da criança, modela-a por procedimentos irracionais, aclimata-a a métodos errôneos e deixa-a desarmada ante a razão, revoltada contra a inexatidão. O atentado que o dogma busca realizar contra a criança hoje, ela o consumou durante séculos contra a humanidade-criança. Aproveitando-se, abusando da credulidade, da ignorância do espírito timorato de nossos pais, as religiões - todas as religiões - obscurecem o pensamento, acorrentaram o cérebro das gerações desaparecidas.
A religião ainda é o progresso retardado.
Para aquele a quem a estúpida espera por uma eternidade de alegrias ou sofrimentos embrutece, a vida não é nada.
Como duração, ela é de uma extrema efemeridade; vinte, cinquenta, cem anos nada são em comparação a séculos sem fim que comporta a eternidade. O indivíduo curvado sob o jugo das religiões vai dar alguma importância a essa curta travessia, a essa viagem de um instante? Certamente não.
A seus olhos, a vida é apenas o prefácio da eternidade que ele aguarda; a terra é só o vestíbulo que o conduz a ela.
Assim, por que lutar, buscar, compreender, saber? Porque se ocupar tanto em melhorar as condições de tão curta viagem? Por que se esforçar para tornar mais espaçoso, mais arejado, mais iluminado esse vestíbulo, esse corredor no qual só paramos por um minuto?
Só uma coisa importa: cuidar da salvação de sua alma, submeter-se a deus.
Ora, o progresso só é obtido por um esforço obstinado; este só é realizado por quem experimenta sua necessidade. E visto que viver bem, satisfazer seus apetites, diminuir seu sofrimento, aumentar seu bem-estar, são coisas de pouco valor aos olhos do homem de fé, pouco lhe importa o progresso!
Que religiões tenham por consequências o aprisionamento do pensamentos e o fracasso do progresso, estas são verdades que a história encarrega-se de trazer à luz, os fatos vindo aqui confirmar aos montes os dados da reflexão.
Podemos conceber crimes mais pavorosos?
E as guerras sangrentas que, em nome e por conta dos diversos cultos, combateram centenas, milhares de gerações, milhões e centenas de milhões de combatentes! Quem enumerará os conflitos cujas religiões foram a fonte?
Quem formulará o total de mortes dos assassinatos, hecatombes, fuzilarias, crimes cujo sectarismo religioso e misticismo intolerante ensanguentaram o solo sobre o qual se arrasta a humanidade esmagada pelo tirano sanguinário que as castas sacerdotais deram-se a sinistra missão de fazer-nos adorar?
Que incomparável artista saberá algum dia traçar, com a suficiente riqueza de coloridos e a necessária exatidão de detalhes, as trágicas peripécias desse drama cujo pavor terrificou durante seis séculos as civilizações assaz deserdadas para gemer sob a dominação da igreja católica, drama que a história atenuou com o nome de "inquisição"?
A religião é o ódio semeado entre os humanos, é o servilismo covarde e resignado dos milhões de submissos; é a ferocidade arrogantes dos papas, dos pontífices, dos padres.
É ainda o triunfo da moral compressiva que resulta na mutilação do ser: moral de maceração da carne e do espírito, moral de mortificação, abnegação, sacrifício; moral que causa no indivíduo uma obrigação de reprimir seus mais generosos ímpetos, comprimir os impulsos instintivos, adestrar suas paixões, sufocar suas aspirações; moral que povoa o espírito de preconceitos ineptos e cumula a consciência de remorsos e temores; moral que engendra a resignação, rompe os poderosos geradores da energia, estrangula o esforço liberador da revolta e perpetua o despotismo dos senhores, a exploração dos ricos e a insana força dos vigários.
A ignorância no cérebro, o ódio no coração, a covardia na vontade, eis os crimes que imputo à ideia de deus e seu fatal corolários, a religião.
Todos esses crimes dos quais acuso publicamente, às claras nessa livre discussão, os impostores que falam e agem em nome de um deus que não existe, eis o que denomino "os crimes de deus", porque é em seu nome que eles foram e ainda são engendrados pela ideia de deus.
Conclusão
A hora é decisiva.
Sob o olhar benevolente do ministério que suportamos, o despertar clerical acentua-se. Os batalhões obscuros agitam-se. A igreja tenta um esforço supremo; ela combate, com todos os seus soldados em pé e todos os seus recursos empregados. A esse exército de fanáticos, opomos uma frente de batalha compacta e enérgica.
Não se trata absolutamente aqui do futuro de um partido; é o futuro da humanidade, é o nosso que está em jogo. Nesse terreno, o entendimento pode, o entendimento deve fazer-se entre todos os seres de progresso, todos os pensadores.
Cada um pode conservar sua liberdade de atitude e, sem nada abdicar de suas convicções pessoais, combater o dogma, o mistério, o absurdo, a religião!
Desde há muito tempo, a humanidade inspira-se em um deus sem filosofia; é tempo de ela ir em busca de uma filosofia sem deus.
Cerremos fileiras, camaradas! Lutemos, batalhemos, esforcemo-nos. Reencontraremos em nossa caminhada as emboscadas, os ataques repentinos ou previstos dos sectários. Mas a grandeza e a justeza da ideia que defendemos sustentarão nossas coragens e assegurar-nos-ão a vitória.
Sébastien Faure