É necessário dizer quem consideramos nossa antítese - os teólogos e todos os que têm sangue de teólogo nas veias - toda a nossa filosofia... É preciso ter visto a fatalidade de perto, ou melhor, tê-la experimentado em si mesmo, ter quase sucumbido a ela, para não mais ver graça nenhuma nisso (o livre pensar de nossos naturalistas e fisiologistas é uma graça a meus olhos - falta-lhes a paixão nessas coisas, o padecer por elas). Esse envenenamento vai muito longe do que se pensa: reencontrei o instinto de arrogância dos teólogos onde quer que hoje alguém se ache "idealista" - onde, em virtude de uma origem mais elevada, arrogue-se o direito de olhar para a realidade de modo alheio e superior... Exatamente como o sacerdote, o idealista tem na mão todos os grandes conceitos (e não só na mão!), com benévolo desprezo ele os põe em jogo contra o "entendimento", os "sentidos", as "honras", o "bem viver", a "ciência", ele vê tais coisas abaixo de si, como forças nocivas e sedutoras, sobre as quais "o espírito" paira em pura "para-si-mesmidade": - como se humildade, castidade, pobreza - numa palavra: santidade - não tivessem até agora prejudicado mais indizivelmente a vida do que quaisquer horrores e vícios... O espírito puro é a pura mentira... Enquanto o sacerdote, esse negador, caluniador, envenenador profissional da vida, for tido como uma espécie mais elevada de homem não haverá resposta para a pergunta: que é verdade? Já se colocou a verdade de cabeça para baixo, quando o consciente advogado do nada e da negação é tido como representante da "verdade"...
Ao instinto de teólogo eu faço guerra: encontrei sua pista em toda parte. Quem possui sangue de teólogo no corpo já tem ante todas as coisas uma atitude enviesada e desonesta. O páthos que daí se desenvolve chama a si mesmo de fé: cerrar os olhos a si mesmo de uma vez por todas, para não sofrer da visão da incurável falsidade. Dessa defeituosa ótica em relação às coisas a pessoa faz uma moral, uma virtude, uma santidade, vincula a boa consciência à falsa visão - exige que nenhuma outra ótica possa mais ter valor, após tomar sacrossanta a sua própria, usando as palavras "deus", "salvação", "eternidade". Desencavei o instinto de teólogo em toda parte: é a mais disseminada, a forma realmente subterrânea de falsidade que existe na Terra. O que um teólogo percebe como verdadeiro tem de ser falso: aí se tem quase que um critério da verdade. Seu mais fundo instinto de conservação proíbe que a realidade recebe honras ou mesmo assuma a palavra em algum ponto. Até onde vai a influência do teólogo, o julgamento de valor está de cabeça para baixo, os conceitos de "verdadeiro" e "falso" estão necessariamente invertidos: o que é mais prejudicial à vida chama-se "verdadeiro", o que a realça, eleva, afirma, justifica e faz triunfar chama-se "falso"... Se acontece de os teólogos, através da "consciência" dos príncipes (ou dos povos), estenderem a mão para o poder, não duvidemos do que no fundo sempre se dá: a vontade de fim, a vontade niilista quer alcançar o poder...
Friedrich Nietzsche
1844 - 1900