Nem a moral nem a religião, no cristianismo, têm algum ponto de contato com a realidade. Nada senão causas imaginárias ("deus", "alma", "eu", "espírito", "livre-arbítrio" - ou também "cativo"); nada senão efeitos imaginários ("pecado", "salvação", "graça", "castigo", "perdão dos pecados"). Um comércio entre seres imaginários ("deus", "espíritos", "almas"); uma ciência natural imaginária (antropocêntrica; total ausência do conceito de causas naturais), uma psicologia imaginária (apenas mal-entendidos sobre si interpretações de sentimentos gerais agradáveis ou desagradáveis - dos estados do nervus sympathicus, por exemplo - com ajuda da linguagem de sinais da idiossincrasia moral-religiosa - "arrependimento", "remorso", "tentação do demônio", "presença de deus"); uma teleologia imaginária ("o reino de deus", "o juízo final", "a vida eterna"). Esse mundo de pura ficção diferencia-se do mundo sonhado, com enorme desvantagem sua, pelo fato de esse último refletir a realidade, enquanto ele falseia, desvaloriza e nega a realidade. Somente depois de inventado o conceito de "natureza", em oposição a "deus", "natural" teve de ser igual a "reprovável" - todo esse mundo fictício tem raízes no ódio ao natural (- a realidade! -), é a expressão de um profundo mal-estar com o real. Mas isso explica tudo. Quem tem motivos para furtar-se mendazmente à realidade? Quem com ela sofre. Mas sofrer com a realidade significa ser uma realidade fracassada... A preponderância dos sentimentos de desprazer sobre os sentimentos de prazer é a causa dessa moral e dessa religião fictícias: uma tal preponderância transmite a fórmula da décadence.
Friedrich Nietzsche
1844 - 1900