Quando se coloca o centro de gravidade da vida não na vida, mas no "além" - no nada -, despoja-se a vida do seu centro de gravidade. A grande mentira da imortalidade pessoal destrói toda razão, toda natureza no instinto - tudo de benéfico, promovedor da vida, garantidor de futuro nos instintos passa a despertar suspeita. Viver de modo que já não há sentido em viver, isso torna-se o sentido da vida... Para que sentido comunitário, para que gratidão para com ascendência e ancestrais, para que colaborar, confiar, fomentar e ter em vista um bem comum?... Outras tantas "tentações", desvios do "caminho reto" - "uma coisa é necessária"... O fato de cada um, sendo "alma imortal", ter o mesmo nível de qualquer outra, de na totalidade dos seres a "salvação" de cada indivíduo reivindicar uma importância eterna, de pequenos santarrões e três quartos malucos poderem presumir que as leis da natureza são constantemente infringidas por sua causa - uma tal exacerbação ao infinito, ao despudorado, de toda espécie de egoísmo não pode ser ferreteada com suficiente desprezo. E, no entanto, o cristianismo deve a essa lamentável adulação da vaidade pessoal o seu triunfo - precisamente todos os malogrados, de atitude rebelde, desfavorecidos, toda a escória e resíduo da humanidade ele conquistou assim para seu lado. A "salvação da alma" - em linguagem clara: "o mundo gira à minha volta"... O veneno da doutrina dos "direitos iguais para todos" - foi disseminado fundamentalmente pelo cristianismo; o cristianismo travou guerra mortal, desde os mais secretos cantos dos instintos ruins, a todo sentimento de reverência e distância entre os homens, ou seja, ao pressuposto de toda elevação, todo crescimento da cultura - com o ressentiment das massas forjou sua principal arma contra nós, contra tudo o que há de nobre, alegre, magnânimo na Terra, contra nossa felicidade na Terra... A "imortalidade" concedida a todo Pedro e Paulo foi, até agora, o maior, mais maligno atentado à humanidade nobre. - E não subestimemos a fatalidade que do cristianismo se insinuou para a política! Hoje ninguém mais tem coragem para direitos especiais, para direitos de senhor, para um páthos da distância... Nossa política está doente dessa falta de coragem! - O aristocratismo da atitude foi minado, nos mais subterrâneos alicerce pela mentira da igualdade de almas; e, se a fé na "prerrogativa da maioria" faz revoluções e fará revoluções, é o cristianismo, não se duvide, são os juízos de valor cristãos, que toda revolução apenas traduz em sangue e em crimes! O cristianismo é a revolta de tudo o que rasteja no chão contra aquele que tem altura: o evangelho dos pequenos torna pequeno...
Friedrich Nietzsche
1844 - 1900