O tom com que um mártir lança ao rosto do mundo o que considera verdadeiro já exprime um grau tão baixo de retidão intelectual, tamanha obtusidade para a questão da verdade, que jamais é preciso refutar um mártir. [...] A conclusão de todos os idiotas, incluindo as mulheres e o povo, de que deve haver algo numa causa pela qual alguém morre (ou que até mesmo, como o cristianismo inicial, produz epidemias de ânsia de morte) - essa conclusão tornou-se um enorme entrave ao exame, ao espírito de exame e à cautela. Os mártires prejudicaram a verdade... Ainda hoje basta a crueza de uma perseguição para dar ao mais insignificante sectarismo um nome respeitável. Como? Altera o valor de algo o fato de alguém dar a vida por ele? Um erro que se torna respeitável é um erro que possui um encanto de sedução a mais: acreditem vocês, senhores teólogos, que lhes daríamos ocasião de se fazerem de mártires para a sua mentira? Refuta-se algo colocando-o atenciosamente sobre o gelo - da mesma forma refuta-se um teólogo... Foi essa estupidez de todos os perseguidores ao longo da história, dar à causa oposta a aparência de algo honroso - presenteá-la com o fascínio do martírio... Ainda hoje a mulher está de joelhos diante de um erro, porque lhe disseram que por ele alguém morreu na cruz. Então a cruz é um argumento? Mas acerca de todas essas coisas apenas um indivíduo disse a palavra que havia milênios era necessária - Zaratustra.
Sinais de sangue eles escreveram no caminho que percorriam, e sua loucura ensinava que a verdade se prova com o sangue.
Mas o sangue é o pior testemunho da verdade; o sangue envenena ainda a mais pura doutrina, tornando-a ilusão e ódio.
E se alguém atravessa o fogo por sua doutrina - que demonstrava isso? Mais vale, verdadeiramente, que da sua própria fogueira venha sua doutrina.
Friedrich Nietzsche
1844 - 1900