Pular para o conteúdo principal

Quote


Contra o que ingenuamente muitos se obstinam em crer não haverá um tribunal de Deus ou da História para julgar as atrocidades cometidas por homens sobre outros homens. O futuro, sempre tão disponível para decretar essa modalidade de amnistia geral que é o esquecimento disfarçado de perdão, também é hábil em homologar, tácita ou explicitamente, quando tal convenha aos novos arranjos económicos, militares ou políticos, a impunidade por toda a vida aos autores directos e indirectos das mais monstruosas acções contra a carne e o espírito. É um erro entregar ao futuro o encargo de julgar os responsáveis pelo sofrimento das vítimas de agora, porque esse futuro não deixará de fazer também as suas vítimas e igualmente não resistirá à tentação de pospor para um outro futuro ainda mais longínquo o mirífico momento da justiça universal em que muitos de nós fingimos acreditar como a maneira mais fácil, e também a mais hipócrita, de eludir responsabilidades que só a nós nos cabem, a este presente que somos. Pode-se compreender que alguém se desculpe alegando: "Não sabia", mas é inaceitável que digamos: "Prefiro não saber". O funcionamento do mundo deixou de ser o completo mistério que foi, as alavancas do mal encontram-se à vista de todos, para as mãos que as manejam já não há luvas bastantes que lhes escondam as manchas de sangue. Deveria portanto ser fácil a qualquer um escolher entre o lado da verdade e o lado da mentira, entre o respeito humano e o desprezo pelo outro, entre os que são pela vida e os que estão contra ela. Infelizmente as coisas nem sempre se passam assim. O egoísmo pessoal, o comodismo, a falta de generosidade, as pequenas cobardias do quotidiano, tudo isto contribui para essa perniciosa forma de cegueira mental que consiste em estar no mundo e não ver o mundo, ou só ver dele o que, em cada momento, for susceptível de servir os nossos interesses. Em tais casos não podemos desejar senão que a consciência nos venha sacudir urgentemente por um braço e nos pergunte à queima-roupa: "Aonde vais? Que fazes? Quem julgas tu que és?" Uma insurreição das consciência livres é o que necessitaríamos. Será ainda possível?

José Saramago
1922 - 2010

Postagens mais visitadas deste blog

O divino

O Dalai Lama saiu em defesa dos testes termonucleares recentemente realizados pelo Estado indiano, e o fez utilizando a mesma linguagem dos partidos chauvinistas que hoje controlam os negócios do país. Os países "desenvolvidos", diz ele, precisam se dar conta de que a Índia é um grande adversário e não se preocupar com seus assuntos internos. Essa é uma perfeita afirmação de realpolitik , tão grosseira, banal e oportunista que não merecia qualquer comentário se viesse de outra fonte. "Pense diferente", diz o incorreto anúncio dos computadores da Apple que exibe a expressão serena de Sua Santidade. Entre as suposições não confirmadas dessa campanha de cartazes está a crença ampla e preguiçosamente sustentada de que a fé "oriental" é diferente de outras religiões: menos dogmática, mais contemplativa, mais... transcendental. Essa bem-aventurada, irrefletida excepcionalidade foi transmitida ao Ocidente por intermédio de uma sucessão de meios e narrativas, vari

Teocracia

Não adianta escrever em inglês verdades como   your heaven's a lie . O raio de alcance de uma educação laica foi anulada por políticos que veem na religião nada mais que uma utilidade de explorar a massa. A massa condicionada a aceitar valores impostos de cima não procura soluções de melhoria de sua própria condição sócio-econômica. Não há projeto algum desenhado. Isso é tão verdadeiro que basta entrar em qualquer página digital dos funcionários do Estado, do ministro ao subalterno. Preocupações por construir espaços alternativos não estão na agenda de ninguém. Fora das capitais, as quais estão sofrendo de um déficit enorme de cultura crítica, multiplicam-se as arquiteturas de ilusão. O latifúndio brasileiro não projeta nenhum futuro inteligente e belo.  Dom Sathanas

A serviço da pulsão de morte

As indignações seletivas A possibilidade de selecionar excertos dos três livros do monoteísmo poderia ter produzido os melhores resultados: bastaria basear-se na proibição deuteronômica de matar transformada em absoluto universal sem nunca tolerar uma única exceção, destacar a teoria evangélica do amor ao próximo proibindo tudo o que contradissesse esse imperativo categórico, apoiar-se em tudo e por tudo na surata corânica segundo a qual matar um homem é suprimir a humanidade inteira, para que subitamente as religiões do Livro fossem recomendáveis, apreciáveis, desejáveis. Se os rabinos proibissem que se pudesse ser judeu e massacrar, colonizar, deportar populações em nome de sua religião, se os padres condenassem quem quer se suprimisse a vida de seu próximo, se o papa, o primeiro  dos cristãos, tomasse sempre o partido das vítimas, dos fracos, dos miseráveis, dos degradados, dos excluídos, dos descendentes do povo humilde dos primeiros fiéis de Cristo; se os califas, os imãs, os aiat