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A verdade cristalina e as bolas de cristal


Uma estrela de cinema "coloca cristais de quartzo nos quatro cantos da banheira antes de cada banho". Não há dúvida de que isso tenha alguma conexão mística com a seguinte receita para meditação:

Cada um dos quatro cristais de quartzo na sala de meditação deve ser "programado" para projetar uma energia suave, terna, relaxante e cristalina em direção a todos os participantes do grupo de meditação presentes. Os cristais de quartzo passarão então a gerar um campo de energia cristalina positiva em torno de cada pessoa na sala.

Esse tipo de linguagem é um engodo. Ele soa suficientemente "científico" para enganar as pessoas ingênuas. Aplicada aos cristais, a palavra não tem significado algum. "Energia" e "campo" são noções cuidadosamente definidas pela física. Não existe uma coisa tal como energia "terna" ou "cristalina", seja ela positiva ou não. 

O saber da Nova Era nos aconselha também a colocar um cristal de quartzo em nossa moringa d'água. "Você logo sentirá na água a pureza cintilante do cristal." Observe como o truque funciona. Uma pessoa sem compreensão alguma do mundo real poderia estabelecer uma certa associação "poética" entre o cristal e a água "cristalina". Mas isso não faz mais sentido do que tentar ler à luz uma ideia "brilhante". Ou do que se deitar num colchão duro como uma tábua para auxiliar uma ereção.

Faça a seguinte experiência na próxima vez que você tiver uma gripe: segure seu cristal de quartzo e visualize uma luz amarela irradiando através dele. Então, coloque-o numa jarra com água e beba essa água no dia seguinte; um copo d'água a intervalos de duas horas. Você ficará surpreso com o resultado!

Beber água a intervalos de duas horas é certamente uma boa ideia quando se está com gripe. Mas colocar na água um cristal de quartzo não acrescentará nenhum efeito. Ou seja, não importa quanta luz colorida se visualize, isso não alterará a composição do cristal, nem a da água.

Disparates pseudocientíficos como esses são perturbadoramente comuns na cultura de nossa época. Restringi meus exemplos aos cristais apenas porque precisava estabelecer um limite em algum ponto. Mas os "signos astrológicos" teria servido igualmente bem. Ou os "anjos", a "comunicação com os espíritos", a "telepatia", a "cura quântica", "a homeopatia", e a "radiestesia". Não há nenhum limite óbvio para a credulidade humana. Somos dóceis vaquinhas ingênuas, vítimas ávidas dos curandeiros, e charlatães que mamam e engordam às nossas custas. Há uma verdadeira fortuna à espera de quem quer que se disponha a prostituir a linguagem da ciência.

Mas tudo isso - a cristalomancia, a astrologia, as pedras do zodíaco, as ley-lines e todo o resto - não representaria apenas um pouco de diversão inofensiva? Se as pessoas desejam acreditar em bobagens como os horóscopos ou a cura pelos cristais, por que não deixá-las em paz? Mas é muito triste pensar em tudo aquilo que elas estão perdendo. A verdadeira ciência é repleta de fatos extraordinários. O mundo é misterioso o suficiente para dispensar a ajuda de feiticeiros, xamãs e vigaristas "paranormais". Na melhor das hipóteses, eles oferecem uma distração que enfraquece a consciência. Nos piores casos, trata-se mesmo de aproveitadores que representam um perigo enorme.

O mundo real, desde que compreendido de forma correta pela via da ciência, é profundamente belo e infalivelmente interessante. Ele merece que empreendamos uma boa dose de esforço honesto para entendê-lo de maneira apropriada, sem nos deixarmos distrair pelos falsos milagres e pela desonrada pseudociência. Como ilustração disso, é suficiente olharmos para os próprios cristais.

Num cristal como o quartzo ou o diamante os átomos se dispõem num arranjo que se repete com muita precisão. No diamante, os átomos - todos eles átomos idênticos de carbono - se distribuem como os soldados num desfile, exceto por dois fatos: a exatidão de seu alinhamento supera de longe a do mais treinado regimento e a quantidade de soldados atômicos ultrapassa o número de pessoas que já existiram ou que existirão um dia. Tentemos imaginar a nós mesmos reduzidos em tamanho até nos tornarmos um dos átomos de carbono no interior de um diamante. Nós nos transformamos em um dos soldados dessa parada colossal, mas ela nos parecerá um tanto estranha, uma vez que suas filas se dispõem em três dimensões. Talvez um prodigioso cardume de peixes nos forneça uma imagem mais próxima.

Cada peixe no cardume é um átomo de carbono. Imagine-os flutuando no espaço, cada um mantendo-se a uma certa distância do outro e numa posição precisa que é o resultado da ação de forças que não podemos ver, mas que os cientistas podem compreender. No entanto, se estamos falando de um cardume de peixes, esse é um cardume que (proporcionalmente) ocuparia todo o oceano Pacífico. Ao olharmos para qualquer diamante de um tamanho decente, é provável que estejamos diante de arranjos em que cada uma das linhas retas comporta centenas de milhões de átomos.

Nos cristais, os átomos de carbono podem assumir outros arranjos. Para voltar à analogia militar, eles podem adotar outras convenções de formação. O grafite é um carbono também, mas obviamente ele não é como os diamantes. No grafite, os átomos formam camadas de hexágonos semelhantes aos aramados com os quais construímos os galinheiros. Cada uma delas se une frouxamente às camadas acima e abaixo dela e, na presença de impurezas, deslizam com facilidade umas contra as outras, o que faz do grafite um bom lubrificante. Sua dureza lendária pode produzir abrasão nos materiais mais resistentes. No grafite, com sua maleabilidade, e no diamante, com toda a sua dureza, os átomos são idênticos. Se pudéssemos convencer os átomos nos cristais de grafite a adotar as regras de formação dos diamantes, ficaríamos milionários. É possível fazer isso, mas são necessárias altas temperaturas e pressões colossais, presumivelmente as condições que produzem naturalmente os diamantes nas profundezas da terra.

Se os hexágonos formam uma camada plana no grafite, podemos imaginar que, ao entremear alguns pentágonos entre os hexágonos, faríamos essa camada se dobrar, formando uma curva. Se colocarmos estrategicamente doze pentágonos em meio a vinte hexágonos, a curva se fechará formando uma esfera completa. Os geômetras chamam isso de um icosaedro truncado. Esse é exatamente o padrão das suturas numa bola de futebol. Na teoria, a bola de futebol mostra, portanto, um padrão que os átomos do carbono podem espontaneamente adotar.

Mirabile dictu, descobriu-se que os átomos de carbono podiam assumir exatamente esse padrão. A equipe responsável pela descoberta, incluindo Sir Harry Kroto da Universidade de Sussex, ganhou o prêmio Nobel de Química em 1996. A elegante esfera de sessenta átomos de carbono, ligados entre si na forma de vinte hexágonos entremeados por doze pentágonos, foi chamada de buckminsterfullereno. Seu nome homenageia o visionário arquiteto americano Buckminster Fuller (que eu tive o privilégio de conhecer quando ele já se encontrava numa idade bastante avançada), e as esferas são carinhosamente chamadas de "bolas de Buck". Elas podem se combinar entre si para formar cristais maiores. Assim como as camadas de grafite, as bolas de Buck funcionam bem como lubrificantes, provavelmente devido a seu formato esférico: presume-se que elas funcionam como minúsculos rolamentos.

Desde a descoberta das bolas de Buck, os químicos se deram conta de que esse é apenas um caso especial de uma grande família de "tubos de Buck" e outros "fullerenos". Teoricamente, os átomos de carbono podem se juntar para compor uma verdadeira caverna de Aladim de formas cristalinas fascinantes - outro aspecto da propriedade singular que faz do carbono o elemento fundamental da vida.

Nem todo átomo tem a mesma vocação dos átomos de carbono para se ligar a cópias de si mesmo. Há outros cristais que contêm mais de um tipo de "soldado", alternados  em algum padrão elegante. Nos cristais de quartzo, em vez do carbono, os soldados são o silício e o oxigênio; no sal comum, são os átomos de sódio e de cloro, carregados de eletricidade. Os cristais quebram naturalmente ao longo de linhas que evidenciam seu padrão regimental de formação. É por essa razão que os cristais de sal são quadrados, que as colunas em formato de favos de mel da Giant's Causeway têm essa forma e que os cristais de diamante são, ora essa, do formato de diamantes.

Todos os cristais "se auto-organizam" sob regras que agem localmente. Seus "soldados" componentes, flutuando livres em solução, espontaneamente se inserem nas "lacunas" na superfície de cristal existente, onde se encaixam com exatidão. Assim, um cristal pode se formar numa solução a partir de uma minúscula "semente" - talvez uma impureza como o grão de areia no centro de uma pérola. Não há um design inteligente por trás das bolas de Buck, dos cristais de quartzo, dos diamantes ou em nenhum outro. Esse princípio da auto-organização opera também estruturas vivas. O próprio DNA (a molécula genética, a molécula no centro de toda forma de vida) pode ser considerado uma longa espiral de cristal em que uma das metades da hélice dupla se junta a um modelo fornecido pela outra. Os vírus se auto-organizam de maneira semelhante a aglomerados de cristais intrincadamente complexos. A cabeça do bacteriófago T4 (um vírus que infecta bactérias) se assemelha de fato a um cristal.

Vá a qualquer museu e observe a coleção de minerais. Ou então vá a uma loja esotérica e olhe os cristais em exibição, ao lado de todo os outros utensílios kitsch feitos para a bruxaria e a charlatanice. Os cristais não responderão às suas tentativas de "programá-los" para meditação ou de aplicar a eles pensamentos suaves e ternos. Eles não o curarão de nada, nem preencherão sua sala com "paz interior" ou "energia mediúnica". Mas muitos se mostrarão extremamente belos, e a beleza deles aumenta ainda mais quando compreendemos que os formatos dos cristais, os ângulos de suas facetas e as cores do arco-íris que reluzem de seu interior têm todos uma explicação precisa profundamente enraizada nos arranjos ordenados de seus átomos.

Os cristais não vibram com uma energia mística e amorosa. Mas eles de fato vibram, de uma maneira muito mais estrita e interessante. Alguns cristais contêm uma carga de eletricidade que se altera quando os deformamos fisicamente. Esse efeito "piezoelétrico", descoberto em 1880 pelos irmãos Curie (o marido de Marie e seu irmão), é usado nas agulhas dos toca-discos (a "deformação" é feita pelo sulco do disco que gira) e em alguns microfones (a "deformação" é feita pelas ondas sonoras no ar). O efeito piezo funciona também na direção inversa. Quando um cristal adequado é submetido a um campo de eletricidade, ele sofre uma deformação ritmada. Com frequência o ritmo dessa oscilação é extremamente preciso. Ele serve como o equivalente do pêndulo ou do oscilador num relógio de quartzo.

Permitam-me dizer uma última coisa a respeito dos cristais, e talvez ela seja a mais fascinante de todas. A metáfora militar nos leva a pensar que cada soldado se mantém a um ou dois metros de seu vizinho. Mas, na realidades, quase todo o interior de um cristal é um espaço vazio. Minha cabeça tem dezoito centímetros de diâmetro. Proporcionalmente, meus vizinhos mais próximos na parada dos cristais teriam que se manter a mais de um quilômetro de distância. Não surpreende que as minúsculas partículas que são chamadas de neutrino (ainda menores que os elétrons) atravessem o planeta e saiam do outro lado como se ele não existisse (somos atravessados por uma delas a cada segundo, em média).

Mas se as coisas sólidas são em sua maioria parte um espaço vazio, por que não as enxergamos dessa forma? Por que um diamante se mostra tão duro e sólido e não quebradiço e cheio de buracos? A resposta está na nossa evolução. Nosso órgãos sensoriais, como todas as partes de nosso corpo, forma modelados pela seleção natural darwiniana ao longo de inumeráveis gerações. Poderíamos pensar que eles foram moldados para nos dar um retrato "verdadeiro" do mundo como ele "realmente" é. É mais seguro presumir que eles foram moldados para nos fornecer um retrato útil do mundo, que nos auxilie em nossa sobrevivência. De certo modo, o que os órgãos sensoriais fazem é ajudar o nosso cérebro a construir um modelo útil do mundo, e é nesse modelo que nos movemos. É um tipo de "realidade virtual", de simulação do mundo real. Os neutrino podem passar através de uma rocha, mas nós não podemos. Se tentarmos fazê-lo, acabaremos por nos machucar. Ao construir sua simulação da rocha, o cérebro a representa, portanto, como um objeto duro e sólido. É quase como se os nossos órgãos sensoriais estivessem nos dizendo: "Você não pode atravessar objetos desse tipo". É isso o que o "sólido" significa. É por essa razão que os percebemos como "sólidos".

É por essa mesma razão que consideramos muitas coisas no universo, do modo como a ciência as descreve, difíceis de compreender. A relatividade de Einstein, a inconstância do quantum, os buracos negros, o universo em expansão, a vasta lentidão do tempo geológico - tudo isso é de difícil apreensão. Não é de se admirar que a ciência assuste algumas pessoas. Mas a ciência pode até mesmo explicar por que essas coisas são difíceis de compreender, e por que os esforço nos amedronta. Nós somos macacos que, um belo dia, ficaram de pé, e nossos cérebros foram projetados apenas para entender os detalhes mundanos relativos à sobrevivência na savana africana na idade da pedra.

Essa são questões profundas, e um artigo breve como este não é o lugar para me dedicar a elas. Terei alcançado meu objetivo se tiver convencido o leitor de que uma abordagem científica dos cristais é mais esclarecedora, mais inspiradora e também mais extraordinária do que tudo o que tenha sido imaginado nos mais loucos sonhos dos gurus ou dos pregadores paranormais da Nova Era. A verdade nua e crua é que os sonhos e as visões dos gurus e pregadores estão longe de ser loucos o suficiente. Para os padrões da ciência, é claro.

Richard Dawkins

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