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Brasil: mito fundador e sociedade autoritária


Conservando as marcas da sociedade colonial escravista, ou aquilo que alguns estudiosos designam como "cultura senhorial", a sociedade brasileira é marcada pela estrutura hierárquica do espaço social que determina a forma de uma sociedade fortemente verticalizada em todos os seus aspectos: nela, as relações sociais e intersubjetivas são sempre realizadas como relação entre um superior, que manda, e um inferior, que obedece. As diferenças e assimetrias são sempre transformadas em desigualdades que reforçam a relação mando-obediência. O outro jamais é reconhecido como sujeito nem como sujeito de direitos, jamais é reconhecido como subjetividade nem como alteridade. As relações entre os que se julgam iguais são de "parentesco", isto é, de cumplicidade ou de compadrio; e entre os que são vistos como desiguais o relacionamento assume a forma do favor, da clientela, da tutela ou da cooptação. Enfim, quando a desigualdade é muito marcada, a relação assume a forma nua da opressão física e/ou psíquica. A divisão social das classes é naturalizada por um conjunto de práticas que ocultam a determinação histórica ou material da exploração, da discriminação e da dominação, e que, imaginariamente, estruturam a sociedade sob o signo da nação una e indivisa, sobreposta como um manto protetor que recobre as divisões reais que a constituem.

Porque temos o hábito de supor que o autoritarismo é um fenômeno político que, periodicamente, afeta o Estado, tendemos a não perceber que é a sociedade brasileira que é autoritária e que dela provêm as diversas manifestações do autoritarismo político.

Quais os traços mais marcantes dessa sociedade autoritária? Resumidamente, diremos ser os seguintes:

- estruturada pela matriz senhorial da Colônia, disso decorre a maneira exemplar em que faz operar o princípio liberal da igualdade formal dos indivíduos perante a lei, pois no liberalismo vigora a ideia de que alguns são mais iguais do que outros. As divisões sociais são naturalizadas em desigualdades postas como inferioridade natural (no caso das mulheres, dos trabalhadores, negros, índios, imigrantes e idosos), e as diferenças, também naturalizadas, tendem a aparecer ora como desvios da norma (no caso das diferenças étnicas e de gênero), ora como perversão ou monstruosidade (no caso dos homossexuais, por exemplo). Essa naturalização, que esvazia a gênese histórica da desigualdade e da diferença, permite a naturalização de todas as formas visíveis e invisíveis de violência, pois estas não são percebidas como tais;

- estruturada a partir das relações privadas, fundadas no mando e na obediência, disso decorre a recusa tácita (e às vezes explícita) de operar com os direitos civis e a dificuldade para lutar por direitos substantivos e, portanto, contra formas de opressão social e econômica: para os grandes, a lei é privilégio; para as camadas populares, repressão. Por esse motivo, as leis são necessariamente abstratas e aparecem como inócuas, inúteis ou incompreensíveis, feitas para ser transgredidas e não para ser cumpridas nem, muito menos, transformadas;

- A indistinção entre o público e o privado não é uma falha ou um atraso que atrapalham o progresso nem uma tara de sociedade subdesenvolvida ou dependente ou emergente (ou seja lá o nome que se queira dar a um país capitalista periférico) Sua origem, como vimos há pouco, é histórica, determinada pela doação, pelo arrendamento ou pela compra das terras da Coroa, que, não disponde de recursos para enfrentar sozinha a tarefa colonizadora, deixou-a nas mãos dos particulares, que, embora sob o comando legal do monarca e sob o monopólio econômico da metrópole, dirigiam senhorialmente seus domínios e dividiam a autoridade administrativa com o estamento burocrático. Essa partilha do poder torna-se, no Brasil, não uma ausência do Estado (ou uma falta de Estado), nem, como imaginou a ideologia da "identidade nacional", um excesso de Estado para preencher o vazio deixado por uma classe dominante inepta e classes populares atrasadas ou alienadas, mas é a forma mesma de realização da política e de organização do aparelho do Estado em que os governantes e parlamentares "reinam" ou, para usar a expressão de Faoro, são "donos do poder", mantendo com os cidadãos relações pessoais de favor, clientela e tutela, e praticam a corrupção sobre os fundos públicos. Do ponto de vista dos direitos, há um encolhimento do espaço público; do ponto de vista dos interesses econômicos, um alargamento do espaço privado.

- realizando práticas alicerçadas em ideologias de longa data, como as do nacionalismo militante apoiado no "caráter nacional" ou na "identidade nacional", que mencionamos anteriormente, somos uma formação social que desenvolve ações e imagens com força suficiente para bloquear o trabalho dos conflitos e das contradições sociais, econômicas e políticas, uma vez que conflitos e contradições negam a imagem da boa sociedade indivisa, pacífica e ordeira. Isso não significa que conflitos e contradições sejam ignorados, e sim que recebem uma significação precisa: são sinônimos de perigo, crise, desordem e a eles se oferece como resposta única a repressão policial e militar, para as camadas populares, e o desprezo condescendente, para os opositores em geral. Em suma, a sociedade auto-organizada, que expõe conflitos e contradições, é claramente percebida como perigosa para o Estado (pois este é oligárquico) e para o funcionamento "racional" do mercado (pois este só pode operar graças ao ocultamento da divisão social). Em outras palavras, a classe dominante brasileira é altamente eficaz para bloquear a esfera pública das ações sociais e da opinião como expressão dos interesses e dos direitos de grupos e classe sociais diferenciados e/ou antagônicos. Esse bloqueio não é um vazio ou uma ausência, isto é, uma ignorância quanto ao funcionamento republicano e democrático, e sim um conjunto positivo de ações determinadas que traduzem uma maneira também determinada de lidar com a esfera da opinião: de um lado, os mass media monopolizam a informação, e, de outro, o discurso do poder define o consenso como unanimidade, de sorte que a discordância é posta como perigo, atraso ou obstinação vazia;

- por estar determinada, em sua gênese histórica, pela "cultura senhorial" e estamental que preza a fidalguia e o privilégio e que usa o consumo de luxo como instrumento de demarcação da distância social entre as classes, nossa sociedade tem o fascínio pelos signos de prestígio e de poder, como se depreende do uso de títulos honoríficos sem qualquer relação com a possível pertinência de sua atribuição (o caso mais corrente sendo o uso de "doutor" quando, na relação social, o outro se sente ou é visto como superior e "doutor" é o substituto imaginário para antigos títulos de nobreza), ou da manutenção de criadagem doméstica, cujo número indica aumento (ou diminuição) de prestígio e de status, ou, ainda, como se nota na grande valorização dos diplomas que credenciam atividades não-manuais e no consequente desprezo pelo trabalho manual, como se vê no enorme descaso pelo salário mínimo, nas trapaças no cumprimento dos insignificantes direitos trabalhistas existentes e na culpabilização dos desempregados pelo desemprego, repetindo indefinidamente o padrão de comportamento e de ação que operava, desde a Colônia, para a desclassificação dos homens livres pobres.

A desigualdade salarial entre homens e mulheres, entre brancos e negros, a existência de milhões de crianças sem infância - conforme definição de José de Souza Martins - e a exploração do trabalho dos idosos são consideradas normais. A existência dos sem-terra, dos sem-teto, dos milhões de desempregados é atribuída à ignorância, à preguiça e à incompetência dos miseráveis. A existência de crianças sem infância é vista como tendência natural dos pobres à vadiagem, à mendicância e à criminalidade. Os acidentes de trabalho são imputados à incompetência e à ignorância dos trabalhadores. As mulheres que trabalham fora, se não forem professoras, enfermeiras ou assistentes sociais, são consideradas prostitutas em potencial e as prostitutas, degeneradas, perversas e criminosas, embora, infelizmente, indispensáveis para conservar a santidade da família.

O Brasil ocupa o terceiro lugar mundial em índice de desemprego, gasta por volta de 90 bilhões de reais por ano em instrumentos de segurança privada e pública, ocupa o segundo lugar mundial nos índices de concentração da renda e de má distribuição da riqueza, mas ocupa o oitavo lugar mundial em termo do Produto Interno Bruto. A desigualdade na distribuição da renda - 2% possuem 98% da renda nacional, enquanto 98% possuem 2% dessa renda - não é percebida como forma dissimulada de apartheid social ou como socialmente inaceitável, mas é considerada natural e normal, ao mesmo tempo que explica por que o "povo ordeiro e pacífico" dispende anualmente fortunas em segurança, isto é, em instrumentos de proteção contra os excluídos da riqueza social. Em outras palavras, a sociedade brasileira está polarizada entre a carência absoluta das camadas populares e o privilégio absoluto das camadas dominantes e dirigentes.

O autoritarismo social, que, enquanto "cultura senhorial", naturaliza as desigualdades e exclusões socioeconômicas, vem exprimir-se no modo de funcionamento da política. Quando se observa a história econômica do país, periodizada segunda a ascensão e o declínio dos ciclos econômicos e, portanto, segundo a subida e a queda de poderes regionais, e quando se observa a história política do país, em que o poderio regional é continuamente contrastado com o poder central, que ameaça as regiões para assegurar a suposta racionalidade e necessidade da centralização, tem-se uma pista para compreender por que os partidos políticos são associações de famílias rivais ou clubs privés das oligarquias regionais. Esses partidos arrebanham a classe média regional e nacional em torno do imaginário autoritário, isto é, da ordem (que na verdade nada mais é do que o ocultamento dos conflitos entre poderes regionais e poder central, e ocultamento dos conflitos gerados pela divisão social das classes sociais), e do imaginário providencialista, isto é, o progresso. Mantém com os eleitores quatro tipos principais de relações: a de cooptação, a de favor e clientela, a de tutela e a de promessa salvacionista ou messiânica.

Posta no momento em que o mito fundador produz a sagração do governante, a política se oculta sob a capa da representação teológica, oscilando entre a sacralização e a adoração do bom governante e a satanização e a execração do mau governante. Isso não impede, porém, que, com clareza meridiana, as classes populares percebam o Estado como "o poder dos outros" - a expressão é de Teresa Caldeira - e tendam a vê-lo apenas sob a face do poder Executivo, os poderes Legislativo e Judiciário ficando reduzidos ao sentimento de que o primeiro é corrupto e o segundo, injusto. A identificação do Estado com o Executivo, a desconfiança em face do Legislativo (cujas atribuições e funções não estão clara para ninguém, e cuja venalidade escandaliza, levando a difundir-se a ideia de que seria melhor não o ter) e o medo despertado pelo poder Judiciário (por ser a seara exclusiva dos letrados ou doutores, secreto e incompreensível), somados ao autoritarismo social e ao imaginário teológico-político, instigam o desejo permanente de um Estado "forte" para a "salvação nacional". Isso é reforçado pelo fato de que a classe dirigente instalada no aparato estatal percebe a sociedade como inimiga e perigosa, e procura bloquear as iniciativas dos movimentos sociais, sindicais e populares.

Acrescentemos a isso as duas grandes dádivas neoliberais: do lado da economia, uma acumulação do capital que não necessita incorporar mais pessoas ao mercado de trabalho e consumo, operando com o desemprego estrutural; do lado da política, a privatização do público, isto é, não só o abandono das políticas sociais por parte do Estado e a "opção preferencial" pelo capital nos investimentos estatais. A política neoliberal recrudesce a estrutura histórica da sociedade brasileira, centrada no espaço privado e na divisão social sob a forma da carência popular e do privilégio dos dominantes, pois a nova forma do capitalismo favorece três aspectos de reforço dos privilégios: 1) a destinação preferencial e prioritária dos fundos públicos para financiar os investimentos do capital; 2) a privatização como transferência aos próprios grupos oligopólicos dos antigos mecanismos estatais de proteção dos oligopólios, com a ajuda substantiva dos fundos públicos; 3) a transformação de direitos sociais (como educação, saúde e habitação) em serviços privados adquiridos no mercado e submetidos à sua lógica. No caso do Brasil, o neoliberalismo significa levar ao extremo nossa forma social, isto é, a polarização da sociedade entre a carência e o privilégio, a exclusão econômica e sociopolítica das camadas populares, e, sob os efeitos do desemprego, a desorganização e a despolitização da sociedade anteriormente organizada em movimentos sociais e populares, aumentando o bloqueio à construção da cidadania como criação e garantia de direitos.

Ajuntemos, por fim, a contribuição projetada pela social-democracia sob o nome de "terceira via".

Partindo da ideia de que com o fim da geopolítica da Guerra Fria (ou a queda do Muro de Berlim) a distinção entre esquerda e direita perdeu sentido social e político, e afirmando a necessidade de criar uma "economia mista", que concilie a racionalidade do mercado capitalista e os valores socialistas convenientemente reformulados, a "terceira via" pretende "modernizar o centro". Essa modernização se traduz na aceitação da ideia de justiça social, mas com a rejeição das ideias de luta de classes ou política de classes e de igualdade econômica social. O foco da política passa a ser as liberdades ou iniciativas individuais, promovendo, no lugar do antigo Estado do Bem-Estar, uma "sociedade do bem-estar", cuja função é dupla: em primeiro lugar, excluir, sem danos aparentes, a ideia de um vínculo necessário entre justiça social e igualdade socioeconômica; em segundo lugar, e como consequência, desobrigar o Estado de lidar com o problema da exclusão e da inclusão de ricos e pobres, pois a exclusão de ambos desestabiliza os governos e a inclusão de ambos é impossível.

Percebe-se, portanto, que a inclusão econômica e a inclusão política de toda a população é afastada porque julgada impossível para a "governabilidade". O significado desse fatalismo econômico e político é óbvio: a igualdade econômica (ou a justiça social) e a liberdade política (ou a cidadania democrática) estão descartadas. O que poderia ser mais adequado a uma sociedade como a nossa?

Como se vê, não há o que comemorar.

M. C.


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