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Eleitor, escuta!

 

Toda vez que os poderes da Câmara dos Deputados expiram, ouve-se um grito unânime: "Enfim essa Câmara infame vai desaparecer! O país vai, portanto, livrar-se desse maldito Parlamento!"

Essa linguagem traduz expressamente os sucessivos sentimentos: decepção, lassidão, repugnância que fazem nascer, no espírito público, durante a legislatura que termina, a incapacidade, a corrupção, a incoerência e a covardia dos parlamentares.

Por que é preciso que a admiração irrefletida do popular, sua ignorância e sua falta de observação conduzam-no a crer que a Câmara que vai nascer será melhor do que aquela que morrerá?

É inconcebível que, periodicamente enganada, constantemente abusada, a confiança do eleitor sobreviva às decepções das quais ele sofre e lamenta-se; e, para sê-lo razoável e inteligente, é um assombro constatar que as legislaturas sucedem-se, cada uma delas deixando para trás o mesmo desencantamento, a mesma reprovação e que, contudo, o eleitor persiste em considerar um dever votar.

Abre-se o período eleitoral; está aberto. É a crise que, periodicamente, convulsiona a multidão. Ela dura oficialmente algumas semanas e, se levarmos em consideração a efervescência que precede e o tumulto que segue essa crise, pode-se dizer que ela dura três meses.

Três meses durante os quais, povoado de excitados, o país parece atingido de demência: candidatos, comitês e cabos eleitorais, alternadamente confiantes no sucesso ou desesperados para alcançá-lo, vão e vêm, avançam e recuam, gritam e calam-se, afirmam e negam, imploram e ameaçam, consentem e protestam, atacam e defendem-se.

É um espetáculo louco: drama, comédia, vaudevile, bufonaria, farsa, pantomina, todos os gêneros, do trágico ao burlesco, marcam o encontro e encontram-se, associados, confundidos.

A infelicidade é que é às custas do espectador que a farsa é encenada e que, quaisquer que sejam os atores, é sempre ele quem paga, e paga com seu trabalho, sua liberdade, seu sangue.

Pois bem, eleitor, antes de passar ao guichê para saldar teu lugar, escuta-me!

Ou melhor, escuta o que te dizem os Anarquistas; escuta atentamente e raciocina.

Votar é aceitar a Servidão

Os Anarquistas nunca tiveram representantes com assento nas Assembléias parlamentares. Ouvistes, às vezes, tratarem de anarquistas os srs. Clemenceau, Briand e outros parlamentares. Eles não o são; nunca o foram.

Os anarquistas não têm candidato. Além um candidato que se apresentasse como anarquista não teria um único voto, porquanto os anarquistas abstêm-se de votar.

Recusam-se a servir da cédula de voto que a Constituição põe em suas mãos.

Não suponha que é para não fazer como os outros; singulariza-se. Saiba que as razões pelas quais os anarquistas abstêm-se são múltiplas e graves.

Essas razões, ei-las aqui brevemente expostas.

O anarquista é e quer permanecer um homem livre. É claro que, como todos, ele é obrigado a sofrer a lei; mas é com repugnância e quando se submete a ela, não é porque a respeita ou estima justo inclinar-se ante ela; é porque lhe é impossível esquivar-se dela.

Todavia, ele não aceita nem a origem, nem o caráter, nem os fins. Muito pelo contrário, proclama e faz tudo para demonstrar sua iniquidade.

A seus olhos, a lei é, neste momento da história em que vivemos, o reconhecimento e a consagração de um regime social emanado das usurpações e espoliações passadas, e está embasada na dominação de uma casta e na exploração de uma classe.

Esse regime não pode viver e continuar senão tomando emprestado sua aparente e temporária legitimidade do consentimento popular.

Ele está na obrigação de apoiar-se na adesão benévola daqueles que são suas vítimas: na ordem política, os cidadãos; na ordem econômica, os trabalhadores.

Por essa razão, de quatro em quatro anos, o povo é chamado a designar por seus sufrágios os indivíduos a quem ele entende confiar o mandato para pronunciar-se sobre todas as questões que a própria existência da nação provoca.

Essas questões são reguladas por um conjunto de prescrições e defesas que têm força de lei, e a lei dispõe - contra quem quer que tente agir contra ela e, com maior razão ainda, contra quem quer que a viole -  de tal poder de repressão que todo gesto de revolta pelo qual um homem protesta contra a injustiça da lei e tenta furtar-se a ela é passível das mais duras penalidades.

Ora, o Parlamento é a assembleia dos indivíduos a quem o sufrágio dito universal delegou o poder de fazer a lei e o dever de assegurar sua aplicação. O deputado e o senador são antes de tudo legisladores.

Compreendes, agora, eleitor, a exatidão dessa afirmação formulada por Élisée Reclus: "Votar é dar-se um senhor".

Sim! Um senhor, porquanto votar é designar um deputado, é confiar a um eleito o mandato de formular a regra, e atribuir-lhe o poder, pior ainda, impor-lhe o dever de respeitá-lo pela força.

Um senhor, pois votar é renunciar à sua própria liberdade e abdicar em favor do eleito.

Tu, que votas, não me objeta que conservas, apesar de tudo, o direito de insurgir-me. Põe na cabeça que se acontecer de te revoltares contra a Autoridade, renegas a assinatura que deste, violas o engajamento que contraíste, retiras de teu representante o mandato que livremente lhe deste.

Tu o enviaste ao Parlamento com a missão precisa de ali participar, colaborar na discussão, no voto, na promulgação da lei e zelar pela escrupulosa aplicação desta.

É o Parlamento que tem a tarefa de modificar ou a-rogar as leis; por teu sufrágio exprimido, participaste da composição desse parlamento; por teu voto, deste-lhe plenos poderes; o partido ao qual pertences tem representantes no sei dessa assembleia; o programa que afirmaste por teu voto tem porta-vozes na Câmara. Cabe-lhes - tu o quiseste - emendar, corrigir ou ab-rogar as leis que entravam tua independência política e consagram tua servidão econômica.

Enraivece, protesta, indigna-te, tens o direito. Mas é tudo o que te é permitido fazer. Não perde de vista que, ao votar, renunciaste, ispo facto, a teu direito à revolta; que abdicaste em favor dos representantes de teu partido; que, para resumir, cessaste de ser livre.

Aquele que compreendeu essa verdade elementar, o anarquista, não vota porque quer ser um homem livre, porque se recusa a acorrentar sua consciência, pôr a ferros sua vontade, porque entende conservar, a todo instante e em todas as circunstâncias, seu direito à revolta, à insurreição, à revolução.

O Estado é o inimigo!

Escuta mais um pouco. Em regime representativo, o Parlamento é o Estado.

Teoricamente, ele é apenas uma parte, pois, em princípio, ele só é munido do poder legislativo. Mas é o Parlamento (Câmara e Senado reunidos) que elege o Presidente da República, nas mãos de quem é centralizado o poder executivo; e se, teoricamente, é a Magistratura que detém o poder judiciário, assim como é o Parlamento que elabora as leis, e que o poder judiciário só tem o mandado de aplicar suas disposições, vemos que, tudo somado, direita ou indiretamente, o Parlamento é, em última análise, onipotente. É ele o Estado.

Ora, o Estado, dizem os anarquistas, é a tomada de posso do Poder pela classe dominante, em detrimento da classe dominada. É, atualmente, o conjunto das instituições que regem a nação nas mãos dos encarregados de negócios da classe capitalista e, mais especialmente, da alta finança, da potente indústria, do grande comércio e da vasta propriedade rural.

É a cidadela de onde partem as ordens que curvam a multidão; é a gigantesca fortaleza onde se concentra a força armada: tropa, gendarmaria, polícia, cuja função é perseguir, prender, aprisionar e, em caso de revolta coletiva, massacrar quem se insurge.

É o monstro que, insaciavelmente, nutre-se do sangue e dos ossos de todos aqueles que, por seu trabalho, alimentam um orçamento que se infla desmesuradamente.

O Estado é o inimigo contra o qual é preciso lutar, lutar mais, lutar sempre, até que ele seja definitivamente derrotado.

Em democracia, o Estado gaba-se de ser a emanação do Povo soberano. Os partidários do sistema representativo afirmam que, em democracia, é o povo que, por seu representantes, governa; eles declaram que, delegando seus poderes aos homens de sua escolha, são suas aspirações, suas necessidades e seus interesses, que ele afirma por seus mandatários.

Esses senhores mentem e o sabem muito bem; mas repetem infatigavelmente essa impostura, na esperança - infelizmente, demasiado embasado -  de que a mentira cotidianamente repetida acaba por adquirir a força de uma indiscutível verdade.

Entre a asserção mentirosa desses teóricos do democratismo, asserção que a simples observação das realidades desmente, e as afirmações dos anarquistas, afirmações que a história e a experiência justificam, espero, eleitor, que não seja difícil fixar tua escolha.

Não é apenas do Estado nas civilizações antigas, do Estado na Idade Média, do Estado encarnando o Poder pessoal absoluto, mas do Estado sem exceção e, por consequência, do Estado democrático como dos outros que o sr. Clemenceau, que é muito competente nisso, disse no Senado, há alguns anos:

"Senhores, conhecemos o Estado: sabemos o que ele é e o que vale. A história do Estado é toda de sangue e lama!"

Não se trata de apoderar-se do Estado, mas sim aniquilá-lo. Introduzir representantes de seu partido nas Assembleias Legislativas é para lá deslizar uma fração de si mesmo; é levar a essa Assembleias o apoio de seu partido; é injetar-lhe um sangue novo; é consolidar o crédito de suas Assembleias; é fortificar seu poder; é - visto que o Parlamento e o Estado formam um único - servir a causa do Estado em vez de combatê-lo; é, pois, voltar as costas ao objetivo a alcançar; é paralisar o esforço revolucionário, é retardar a liberação.

O Estado é o guardião das fortunas adquiridas; é o defensor dos privilégios usurpados; ele é a muralha que se ergue entre a minoria governante e a multidão governada; é o dique alto e largo que põe um punhado de milionários ao abrigo dos assaltos que lhe lança a torrente agitada dos espoliados.

Assim, é natural, lógico e fatal que os detentores dos privilégios e da fortuna votem com entusiasmo e convicção, que eles empurrem com ardor às urnas, que eles proclamem que votar é realizar um dever sagrado.

Todavia, desconcertante e insensata seria a atitude daqueles que, proclamando-se a favor de uma convulsão social que implique o desaparecimento do Estado, faria uso da cédula do voto cuja consequência seria, quer se queira quer não, legitimar as origens do Estado, confirmar seus poderes, fortalecer seu poder e, por tabela, fazer-se cúmplice de seus crimes.

Do que é composta a Câmara

Eleitor, terias a ingenuidade de crer que o Parlamento reúne a elite da nação? Pensas que a Câmara reúne as glórias da Ciência e da Arte, as ilustrações do Pensamento, as competências da Indústria, do Comércio e da Agricultura, as probidades da Finança? Estimas que o temível poder de governar um povo de quarenta milhões de habitantes é atribuído aos mais honestos e aos mais merecedores? 

Se sim, desengana-te. Passeia teus olhares pela Câmara e vê por que tipo de gente ela é ocupada: advogados sem causa, médicos sem clientela, comerciantes suspeitos, industriais sem conhecimentos especiais, jornalistas sem talento, financistas sem escrúpulos, desocupados e ricos sem ocupações definidas.

Todo esse mundo intriga, tagarela, barganha, faz agiotagem, faz negócios, debate-se, empurra-se e corre em busca dos prazeres, da riqueza e das sinecuras fartamente retribuídas. Isso te surpreende, cândido eleitor? Um minuto de reflexão dissipará tua surpresa. Pergunta-te como se fez que X, Y ou Z sejam deputados.

Seus cargos são a recompensa pelos méritos manifestos, pelas ações de impacto, pelo bem realizado, pelos serviços prestados, que os recomendaram à estima e à confiança púbicas?

Recebem o salário justos pelos conhecimentos especiais que adquiriram, pelos estudos com os quais percorreram o brilhante ciclo da experiência que lhes vale toda uma existência de trabalho?

Foi exigido deles, como se exige dos professores, farmacêuticos, engenheiros, exames, diplomas, a admissão em certas escolas, o estágio regulamentar?

Observa: este deve seu mandato ao dinheiro; aquele à intriga; o terceiro a uma candidatura oficial; o quarto ao apoio de um jornal do qual ele engordou o caixa; aquele outro ao vinho, à cidra, à cerveja ou ao álcool do qual encheu a goela de seus mandantes; esse velho aos coquetismos complacentes de sua jovem esposa; esse jovem às promessas ofuscantes que ele prodigalizou de palmas, tabacarias, cargos e recomendações; todos a procedimentos mais ou menos ilícitos que não têm qualquer relação com o mérito ou o talento; todos, de todas as maneiras, no total de sufrágios que eles obtiveram.

E o número nada tem a ver com o mérito, a coragem, a probidade, o caráter, a inteligência, o saber, os serviços prestados, as ações de impacto. A maioria dos sufrágios não consagra nem o valor moral, nem a superioridade intelectual, nem a justiça, nem a Razão.

Estamos autorizados a dizer que é bem o contrário.

Sejamos justos: alguns homens superiores, de tempos em tempos, desgarraram-se nesses locais mal-afamados, mas é o reduzíssimo número; não tardaram a se encontrar desnorteados e incomodados e, a menos que não tenham insensivelmente condescendido em desempenhar seu papel nas cabalas, inspirar-se nas paixões dos partidos, manter seu lugar nas intrigas de corredor, eles foram rapidamente postos em quarentena e reduzidos à impotência.

Parlamentarismo é sinônimo de incompetência, irresponsabilidade, impotência, corrupção

Além disso, qualquer que seja o homem, a incompetência do parlamentar é uma Fatalidade.

Tendo em vista, de um lado, a complexidade das engrenagens sociais e, do outro, o desenvolvimento dos conhecimentos humanos, não há ninguém que seja capaz de fazer frente às exigências do mandato legislativo.

Em nossa época, só se pode ser competente sob a condição de se especializar. Ninguém pode conhecer tudo: não há cérebro que possa abarcar tudo.

Entretanto, um deputado deveria ser marinheiro, guerreiro, diplomata, industrial, financista, agricultor, administrador, porquanto é chamado a formular sua opinião e a pronunciar-se por um voto preciso sobre todas as questões: marinha, guerra, negócios estrangeiros, legislação, saúde pública, ensino, comércio, indústria, finanças, agricultura, administração etc., etc., etc.

Se ele conhece bem uma ou duas dessas questões - e já seria muito - ignora certamente todas as outras. Disso resulta que nove vezes sobre dez ele vota às cegas.

Parlamento é, pois, sinônimo de incompetência. É igualmente sinônimo de irresponsabilidade.

Aqui, já não é necessário demonstrar nada. Dizer que o Parlamento é irresponsável é uma proposição tornada tão evidente que cessou de estar em discussão.

É ainda sinônimo de impotência, pois, obrigado a acantonar-se nos estreitos limites de uma Constituição política e de um regime econômico determinados, o Parlamento é a imagem exata de um lago cercado de montanhas que pode, de um momento para o outro, ficar agitado ou até mesmo tempestuoso, mas que permanece sempre encerrado no quadro que as alturas circunvizinhas traçam ao seu redor. As ardentes cóleras, as explosões de indignação, os entusiasmos delirantes, os juramentos solenes, os engajamentos sagrados têm, no Parlamento, no máximo o valor dessas agitações periódicas de um vasto charco estagnante que fazem o lodo subir à superfície e empestam a atmosfera, mas que não tardam a deixar recair a lama e o fedor cuja minúscula tempestade revelou a acumulação nas profundezas.

Sinônimo, enfim, de corrupção. Os banditismos autênticos e, mais ainda, os escândalos semi-sufocados fixaram a opinião pública a tal ponto que é banal dizer de um Parlamento que ele é podre! Os melhores putrificam-se em tal meio, a menos que saiam dele a tempo; e a mais abjeta peça que se pode pregar a um amigo é enviá-lo para lá.

Assim, eleitor, se tens um bom amigo, evita incitá-lo a ser candidato; se ele se torna candidato, evia favorecer sua candidatura e, se quiseres conservas nas ideias que são as tuas, e que ele diz querer defender na Câmara, um caráter, uma inteligência, um devotamento, recusa-lhe teu sufrágio.

Votar é fazer o jogo da Reação

Eleitor, mais algumas palavras: serão as últimas.

Não te deixarão de dizer que não votar é fazer o jogo da reação.

Nada é mais falso. Eu poderia te fazer observar que, se os dois milhões de trabalhadores que aderem à C.G.T., se o milhão de eleitores do qual se orgulha o Partido Socialista, se o milhão de outros cidadãos que, sem serem filiados ao Partido Socialista ou à C.G.T., não são menos adversários do regime capitalista: no total, se quatro milhões de eleitores recusassem-se categoricamente a participar do escrutínio, essa abstenção abertamente anunciada e explicada durante todo o período eleitoral e corajosamente pratica no dia do escrutínio, desferiria um golpe mortal no prestígio e na autoridade do regime que deve ser abatido. Eu poderia te dizer que, ante a atitude desses quatro milhões de abstencionistas tão conscientes quanto resolutos, o Governo perderia todo o seu lustre e o mais claro de sua força.

Eu poderia te dizer que, estreitamente unidos numa reprovação tão categórica do sistema social atual, esses quatro milhões de homens poderiam organizar, no país, graças às ramificações que eles possuem em toda parte, uma formidável coalizão contra a qual nada poderia preponderar. Eu poderia afirmar que essa coalizão na qual não tardariam a entrar todos aqueles que seriam tocados por tão poderosa propaganda e, inclusive, uma parte das forças das quais o Governo dispõe, seria muito importante ousar, a empreender e a realizar os mais vastos desígnios e a mais profunda transformação.

O que restaria, então, do espectro da reação que agitam diante de ti para empurrar-te às unas?...

Mas eis o que te parecerá em dúvida ainda mais decisivo.

A Câmara que parte contava um imponente número de elementos de esquerda. Mais de trezentos deputados radicais e radicais socialistas, mas cem deputados socialistas. Eles constituíam indubitavelmente uma maioria esmagadora.

O que fez essa Câmara? O que fizeram esses quatrocentos deputados? Eles aclamaram a guerra, aderiram com entusiasmo à abominável enganação que denominaram "União Sagrada"; votaram todos os créditos de guerra; deram ao governo dito "de defesa nacional" sua estreia e constante colaboração: nada tentaram para abreviar o massacre; não tomaram qualquer medida eficaz contra a carestia, contra o açambarcamento, contra a especulação, contra o enriquecimento escandaloso dos homens de negócios; aceitaram passivamente a supressão de nossas ínfimas liberdades; aplaudiram o esmagamento da revolução húngara; aprovaram o envio dos soldados, marinheiros, munições e bilhões destinados a sufocar, pela fome e pelas armas, a Rússia revolucionária; baixaram covardemente a cabeça, aceitaram tudo, suportaram tudo; passaram a esponja sobre todas as torpezas e todos os crimes.

Eles foram ao extremo do servilismo, da vergonha e da selvageria.

Mal ousaram abrir a boca e, quando falaram, nunca foi para fazer com que fossem ouvidas as verdades que deveriam ser ditas, as imprecações ferinas e as maldições vingadoras que teriam oposto a dor dos lutos, o sofrimento das ruínas e o horror das batalhas à esterilidade dos sacrifícios e à hediondez dos imperialismos desencadeados.

Ao fim de sua carreira, essa Câmara odiosa acaba de ratificar um tratado de paz que deixa em pé, mais insolentes e mais guerreiros do que nunca, todos os militarismos, que favorece os mais atrozes banditismos, que estimula as mais detestáveis cobiças, que aviva os ódios entre povos e que traz em seus flancos a guerra de amanhã.

Eis o que fez essa Câmara cujo nascimento havia, contudo, suscitado as mais loucas esperanças e provocado todos os otimismos.

E agora, eleitor, vota ainda se ousas fazê-los.

Sébastien Faure
1919


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