O verdadeiro caráter de uma coisa é sua impenetrabilidade. Ela pode ser chutada e empurrada, mas é incapaz de armazenar ordens. A definição jurídica do escravo como coisa e como propriedade é, pois, enganosa. Ele é um animal e uma propriedade. É antes com um cão que se pode comparar um escravo. O cão capturado foi retirado do seio de sua matilha: foi isolado. Está sob as ordens de seu dono. Abre mão de suas próprias iniciativas, na medida em que estas contrariem tais ordens, e, como recompensa por isso, é por ele alimentado.
Alimento e ordem possuem assim, tanto para o cão quanto para o escravo, uma mesma fonte - seu dono - e, nesse sentido, não é totalmente inadequado comparar-lhes o status ao das crianças. O que, porém, os diferencia destas tem a ver com a maneira como administram as metamorfoses. A criança exercita todas as metamorfoses das quais, mais tarde, possa vir a precisar. Nesses exercícios, os pais a ajudam e, com novos desafios, estimulam-na sempre a novos jogos. A criança desenvolve-se em muitas direções e, uma vez tendo adquirido o domínio sobre suas metamorfoses, é, como recompensa, acolhida numa categoria mais elevada.
Com o escravo acontece o contrário. Assim como o dono não permite ao cão caçar o que quiser, mas restringe o âmbito dessa caçada segundo o que melhor lhe aprouver, assim também retira do escravo as metamorfoses que este desenvolveu. O escravo não pode fazer isto ou aquilo; certos afazeres específicos, porém, ele tem de repeti-los, e quanto mais monocórdios estes forem, tanto mais seu senhor os destina a ele. Enquanto se lhe permite realizar os mais diversos afazeres, a divisão do trabalho não representa perigo para o modo como o homem administra suas metamorfoses. Mas, tão logo ele é restrito a uma única tarefa, devendo, ademais, realizá-la com a máxima eficiência no menor tempo possível - ser, pois, produtivo - o homem se torna aquilo que verdadeiramente se definira como um escravo.
Desde o princípio, deve sempre ter havido duas espécies bastante distintas de escravos: uns atrelados exclusivamente a um único dono, como os cães domésticos, os outros reunidos feito os rebanhos no pasto. Tais rebanhos, certamente há que se considerá-los os mais antigos escravos do homem.
O desejo de transformar homens em animais constitui o mais forte impulso para a propagação da escravidão. Não há como superestimar a energia desse desejo, bem como a do desejo contrário: o de transformar animais em homens. A este último devem sua existência grandiosas construções intelectuais, tais como a doutrina da metempsicose e o darwinismo, além de diversões populares como as exposições de animais amestrados.
Tão logo os homens conseguiram acumular tantos escravos quanto o número de animais em seus rebanhos, estavam lançadas as bases para o Estado e o despotismo, e não pode haver dúvida de que o desejo de transformar um povo inteiro em escravos ou animais faz-se tanto mais forte no soberano quanto maior o número de pessoas que compõem esse povo.
Elias Canetti
1905 - 1994