O Dalai Lama saiu em defesa dos testes termonucleares recentemente realizados pelo Estado indiano, e o fez utilizando a mesma linguagem dos partidos chauvinistas que hoje controlam os negócios do país. Os países "desenvolvidos", diz ele, precisam se dar conta de que a Índia é um grande adversário e não se preocupar com seus assuntos internos. Essa é uma perfeita afirmação de realpolitik, tão grosseira, banal e oportunista que não merecia qualquer comentário se viesse de outra fonte.
"Pense diferente", diz o incorreto anúncio dos computadores da Apple que exibe a expressão serena de Sua Santidade. Entre as suposições não confirmadas dessa campanha de cartazes está a crença ampla e preguiçosamente sustentada de que a fé "oriental" é diferente de outras religiões: menos dogmática, mais contemplativa, mais... transcendental. Essa bem-aventurada, irrefletida excepcionalidade foi transmitida ao Ocidente por intermédio de uma sucessão de meios e narrativas, variando do best-seller medíocre Horizonte perdido, de James Hilton, às memórias Sete anos no Tibete, do veterano da SS Heinrich Harrer, embelezado nas telas por Brad Pitt. O mau comportamento da China no território ocupado, somado a um culto hollywoodiano que quase supera o poder da própria cientologia, fundiu-se com uma baboseira superficial do tipo Maharish e Bagwan para criar a imagem de um Tibete idealizado e de um deus-rei santificado. Assim, talvez se deva levar em consideração a proposta da Apple de pensar diferente.
A maior vitória que as relações públicas modernas podem oferecer é ter suas palavras e seus atos julgados em função de sua reputação, mais que por qualquer outra coisa. O "líder espiritual" do Tibete já desfruta há algum tempo desse status inabalável, tendo se transformado em símbolo e sinônimo de santidade e valores etéreos. Por que isso não deia as pessoas em alerta eu nunca saberei. Mas há alguns outros fatos sobre o sereno líder que, diminuídos por seu apoio às armas nucleares, ainda merecem ser conhecidos e em geral ainda não são.
Shoko Asahara, líder da seita japonesa "Verdade Suprema" que espalhou gás sarin no metrô de Tóquio, doou 45 milhões de rúpias, ou aproximadamente 170 milhões de ienes, ao Dalai Lama, e seus esforços foram recompensados com vários encontros de alto nível com o divino.
Steven Segal, o "ator" robótico e idiótico que nos deu Difícil de matar e A força em alerta, foi proclamado lama reencarnado e vaso sagrado, ou "tulku" do budismo tibetano. Essa decisão, ratificada por Penor Rinpoche, chefe supremo da escola Nyingma do budismo tibetano, foi inicialmente recebida com incredulidade por Richard Gere, que até então acreditava ser ele mesmo o astro mais cotado. "Se alguém é tulku isso é ótimo", teria dito ele. "Mas ninguém sabe se isso é verdade." Quão sábio, mesmo acidentalmente. Em uma posterior aparição do Dalai Lama em Los Angeles, Seagal estava sentado na primeira fileira e Richar Gere, duas filas atrás, dessa forma dando destaque à humildade e à subserviência deste último. Insinuações de que a fortuna de Seagal ajudou a elevá-lo ao status himalaio de tulku não são inteiramente descartadas por alguns adeptos e iniciados.
Defensores da divindade Dorge Shugden - um "protetor do dharma" e antigo objeto de veneração e apaziguamento no Tibete - foram ameaçados com violência e ostracismo e mesmo morte após a súbita proibição pelo Dalai Lama dessa divindade até então venerada. Um documentário de televisão suíço ironicamente intercala imagens de Sua Santidade negando ter conhecimento de qualquer ameaça ou intimidação com cenas de seus seguidores entusiasmadamente exibindo cartazes de "Procurado" e outras parafernálias de excomunhão e perseguição.
Embora negue ser um "papa" budista, o Dalai Lama nunca se sente mais feliz do que quando reflete de modo celibatário sobre as vidas sexuais de pessoas que ele nunca conheceu. "Comportamento sexual impróprio para homens e mulheres consiste de sexo oral e anal", disse ele repetidamente ao divulgar seu livro sobre essas questões. "Utilizar a mão de alguém é comportamento sexual impróprio". Mas, como sempre acontece com determinações religiosas, há uma saída absurda. "Manter relações sexuais com uma prostituta paga por você e não por uma terceira pessoa não constitui comportamento impróprio". Nada disso pode ter sido dito apenas para aplacar Richard Gere ou conseguir direitos autorais por Uma linda mulher.
Eu conversei com alguns adeptos de Dorge Shudgen, que parecem suficientemente sinceros e assustados, mas não suporto sua insistência na "ironia" de tudo isso. O budismo pode ser tão histérico e sanguinário quanto qualquer outro sistema que se baseia na fé e na tribo. O exército cambojano de Lon Noll era budista pelo menos no nome. Salomon Bandaranaike, primeiro líder eleito do Sri Lanka independente, foi assassinado por um militante budista. Foram pogrons de tâmeis liderados por budistas que deram início à longa e desastrosa guerra interna que até hoje destrói o Sri Lanka. O grandiosamente chamado de Conselho Estatal de Restauração da Lei e da Ordem (SLORC), o fascismo militar que comanda Burma, o faz nominalmente como uma junta budista. Eu até já ouvi dizer que no antigo Tibete, aquela terra antiga e contemplativa, os lamas eram defensores do feudalismo e seriamente infligiam punições medievais como cegar e açoitar até a morte.
Mas toda a mídia ocidental atua acriticamente a serviço de uma mero mortal que, no mínimo, proclama o máximo absurdo da reencarnação e afirma a crença sinistra, se não louca, de que a morte não passa de um estágio em um ciclo do que parece ser futilidade e sujeição. Por que, então, se preocupar com armas nucleares, frenesi sectário ou a venda de indulgências a homens como Steven Seagal? A "harmonia" sem dúvida virá. Durante sua visita a Pequin, nosso sentimental presidente batista hipócrita se virou para o ditador anfitrião e recomendou que ele se encontrasse com o Dalai Lama, e garantiu a ele que os dois se dariam bem. É bem possível que fosse assim. Ambas realmente são criaturas do mundo material.
Christopher Hitchens
The Nation | 1998