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A serviço da pulsão de morte


As indignações seletivas

A possibilidade de selecionar excertos dos três livros do monoteísmo poderia ter produzido os melhores resultados: bastaria basear-se na proibição deuteronômica de matar transformada em absoluto universal sem nunca tolerar uma única exceção, destacar a teoria evangélica do amor ao próximo proibindo tudo o que contradissesse esse imperativo categórico, apoiar-se em tudo e por tudo na surata corânica segundo a qual matar um homem é suprimir a humanidade inteira, para que subitamente as religiões do Livro fossem recomendáveis, apreciáveis, desejáveis. Se os rabinos proibissem que se pudesse ser judeu e massacrar, colonizar, deportar populações em nome de sua religião, se os padres condenassem quem quer se suprimisse a vida de seu próximo, se o papa, o primeiro dos cristãos, tomasse sempre o partido das vítimas, dos fracos, dos miseráveis, dos degradados, dos excluídos, dos descendentes do povo humilde dos primeiros fiéis de Cristo; se os califas, os imãs, os aiatolás, os mulás e outros dignatários muçulmanos condenassem às gemônias os furiosos do gladio, os matadores de judeus, os assassinos de cristãos, os empalhadores de infiéis; se todos esses representantes de seu Deus único na terra optassem pela paz, pelo amor, pela tolerância: em primeiro lugar ter-se-ia visto e sabido em seguida, e então teria sido possível sustentar as religiões em seu princípio, depois contentar-se em condenar o uso que fazem delas os maus, os maldosos. Em vez de tudo isso, eles praticam o contrário, escolhem o pior e, salvo raríssimas exceções pontuais, singulares e pessoais, apoiam sempre na história os comandantes de guerra, os brutos, os militares, os guerreiros, os violadores, os pilhadores, os criminosos de guerra, os torturadores, os genocidas, os ditadores – salvo os comunistas... – a escória da humanidade.

Pois o monoteísmo defende a pulsão de morte, gosta da morte, aprecia a morte, deleita-se com a morte, é fascinado por ela. Ele a dá, a distribui amplamente, ameaça com ela, atua: da espada sanguinolenta dos judeus exterminando os cananeus ao uso de aviões de carreira como bombas voadoras em Nova York, passando pela explosão de cargas atômicas em Hiroxima e Nagasaki, tudo se faz em nome de Deus, é abençoado por ele, mas sobretudo abençoado por aqueles que o invocam. Hoje, o grande rabinato de Jerusalém fustiga o terrorista palestino coberto de explosivos na rua de Jaffa, mas silencia sobre o assassínio dos habitantes de um bairro da Cisjordânia destruído pelos mísseis de Tsahal; o papa insulta a pílula responsabilizada pelo maior genocídio de todos os tempos, mas defende ativamente o massacre de centenas de milhares de tutsis pelos hutus católicos de Ruanda; as mais altas instâncias do islã mundial denunciam os crimes do colonialismo, da humilhação e da exploração que o mundo ocidental os faz (fez) sofrer, mas regozijam-se com um jihad planetário empreendido sob os auspícios da Al-Qaeda. Fascínios pela morte dos goys dos incrédulos e dos infiéis – os três por outro lado considerado o ateu seu único inimigo comum! As indignações monoteístas são seletivas: o espírito de corpo funciona plenamente. Os judeus dispõem de sua Aliança, os cristãos de sua Igreja, os muçulmanos de sua Umma. Esses três tempos escapam à Lei e se beneficiam de uma extraterritorialidade ontológica e metafísica. Entre membros da mesma comunidade, tudo se defende e se justifica. Um judeu – Ariel Sharon – pode (mandar) exterminar um palestino – o pouco defensável xeique Hiacine... – ele não está ofendendo Javé, pois o assassínio é feito em seu nome; um cristão – Pio XII – tem o direito de justificar um genocida que massacra judeus – Eichmann exfiltrado da Europa graças ao Vaticano – ele não contraria seu Senhor, pois o genocídio vinga o deicídio atribuído ao povo judeu; um muçulmano – o mulá Omar – pode (mandar) enforcar mulheres acusadas de adultério, está agradando a Alá, pois o patíbulo é erigido em seu Nome... Por trás de todas essas abominações, versículos da Torah, passagens dos Evangelhos, suratas do Corão que legitimam, justificam e abençoam.

Ao produzir efeitos públicos e políticos, a religião aumenta consideravelmente seu poder de destruição. Quando se toma por base um excerto deste ou daquele dos três livros para explicar a legitimidade e o fundamento do crime perpetrado, este se torna inatacável: é possível ir contra a palavra revelada, o dito de Deus, a exortação divina? Pois Deus não fala – salvo ao povo judeu e a alguns iluminados aos quais às vezes ele envia um mensageiro, uma virgem, por exemplo – mas o clero o faz falar abundantemente.

Quando um homem de Igreja se exprime, quando cita trechos de seu livro, opor-se a ele equivale a dizer não a Deus em pessoa. Quem dispõe de força moral e de convicção para recusar a palavra (de um homem) de Deus?

Toda teocracia torna impossível a democracia. Melhor: uma suspeita de teocracia impede a própria existência da democracia.

A invenção judaica da guerra santa 

A todo Senhor toda honra. Os judeus inventam o monoteísmo, inventam tudo o que combina com ele. O direito divino e seu correlato obrigatório: o povo eleito exaltado, os outros povos rebaixados, lógica coerente; mas também, e sobretudo, a força divina necessária ao apoio desse direito vindo do Céu: pois o braço armado permite sua eficácia na terra. Deus diz, ele fala, seus profetas, os messias e seus enviados diversos traduzem seu discurso, caso contrário bastante inaudível. O clero transforma tudo isso em palavras de ordem defendidas por tropas arreadas, encouraçadas, determinadas, armadas até os dentes. Daí a trifuncionalidade fundadora de civilizações: o Príncipe representante de Deus na terra, o Padre fornecedor de conceitos do Príncipe e o Soldado força bruta do padre. O Povo pagando sempre os custos da perfídia teocrática.

Os judeus inventam a dimensão temporal do espiritual monoteísta. Bem antes deles, o Padre age de concerto com o Rei, a parceria é primitiva, pré-histórica, antediluviana. Mas o Povo eleito assume essa lógica hábil e muito prática: a Terra deve ser organizada como no Céu. No terreno da história devem-se reproduzir os esquemas teológicos. A imanência deve demarcar as regras da transcendência. A Torah conta as coisas sem rodeios. No monte Sinai, Deus dirige-se a Moisés. O povo judeu, na época, está frágil, ameaçado de deixar de existir por causa das guerras com as populações das cercanias. É necessário o apoio de Deus para enfrentar a sequência com serenidade. Um Deus único, belicoso, militar, impiedoso, que dirija o combate sem trégua, capaz de exterminar os inimigos sem sentimentalismo, que inflame suas tropas, eis Javé cujo modelo – como Maomé – está ligado ao do chefe guerreiro tribal que obtém patente cósmica.

Deus promete a seu povo – eleito, escolhido, destacado entre todos os outros, extraído do vulgo, seu “bem particular” (Ex XIX, 5) – um território como “propriedade perpétua” (Gn XVII, 8). Esse território é habitado por gente modesta? Nele um povo cultiva os campos? A terra nutre velhos e crianças? Homens em idade madura criam rebanhos de animais? Mulheres põem bebês no mundo? Adolescentes são educados? Fazem-se preces a deuses?

Pouco importam esses cananeus, Deus decidiu seu extermínio: “eu os exterminarei”, diz ele (Ex XXIII, 23). Para conquistar Palestina, Deus utiliza os grandes meios. Em termos polemológicos contemporâneos, digamos que ele inventa a guerra total. Abre o mar em dois – já que é preciso... – afoga um exército inteiro – sem meias medidas! – detém o sol para que os hebreus tenham tempo de exterminar seus inimigos amoreus, (Js X, 12-14) – amor ao próximo, quando você nos toma... – faz chover pedras e rãs – um pouco de fantasia –, ordena um exército de mosquitos e mutucas – nada de pequenas economias –, transforma a água em sangue – toque de poesia e cor –, desencadeia a peste, úlceras, pústulas – já que a guerra bacteriológica... –, ao que acrescenta o que a soldadesca pratica desde sempre: o assassínio de tudo o que é vivo, mulheres, velhos, crianças, animais (EX XII, 12). A devastação, o incêndio, o extermínio das populações, como se vê, não são invenção recente. Javé abençoa a guerra e os que a fazem; santifica o combate, dirige-o, comanda-o, não em pessoa, certamente – um ectoplasma tem dificuldade para segurar uma espada –, mas inspirando seu povo; justifica os crimes, as mortes, os assassínios, legitima a destruição dos inocentes – matar os animais como homens e os homens como animais! Humano enquanto não se trata de cananeus, ele pode propor que se evite o combate e oferecer em seu lugar a escravidão, sinal de bondade e amor. Aos palestinos, promete a destruição total – a guerra santa segundo a expressão aterradora e hipermoderna do livro de Josué (VI,21). Depois de dois mil e cinco anos, nenhum responsável provindo do povo eleito decidiu que essas páginas pertençam à esfera das fábulas, das lorotas e das ficções históricas altamente perigosas, pois criminosas. Muito pelo contrário. Em todo o planeta há um número considerável de pessoas que vivem, pensam, agem, concebem o mundo a partir desses textos que exortam à carnificina generalizada sem nunca terem sido proibidos de publicação por apelo ao assassínio, racismo e outras incitações às vias de fato. Nos yeshivás, trabalha-se pela perpetuação desses trechos dos quais não se muda uma vírgula, assim como não se toca num fio de cabelo de Javé. A Torah apresenta a primeira versão ocidental das numerosas artes da guerra publicadas no decorrer dos séculos...

Deus, César & Cia

Os cristãos não ficam atrás para envolver Deus em seus crimes. Não há povo eleito nem justificativa para exterminar um povo incômodo para o destino de melhor da classe entre os defensores de Cristo, mas um apelo à palavra de Deus para caucionar as ações muito temporais de uma religião em princípio muito espiritual. Do Jesus humilhado às humilhações praticadas em seu nome, a conversão é rápida, fácil e a mania duradoura entre os cristãos.

Mais uma vez os excertos mostram sua utilidade – invocar João, por exemplo, para o seguinte: “meu reino não é deste mundo” (XVIII, 36); mas remeter a Mateus para o inverso: “Dai a Cesar o que é de César, a Deus o que é de Deus” (XXII, 21). Ora a primazia do espiritual e o desinteresse claro pelos assuntos terrenos; ora a separação dos poderes, certamente, mas promulgando um legalismo de fato, pois dar a César justifica o pagamento do imposto ao exército de ocupação, o consentimento na adesão aos exércitos e a submissão às leis do Império.

A aparente antinomia se resolve quando se esclarece tudo isso com Paulo de Tarso. Pois o cristianismo se distancia do judaísmo tornando-se paulinismo. E as epístolas aos diferentes povos visitados pelo Tarsiota fornecem a doutrina da Igreja em matéria de relações entre espiritual e temporal. Paulo acredita que o reino de Jesus será deste mundo: ele o quer realizável e contribui para sua encarnação aqui e agora, daí suas viagens de Jerusalém a Antióqua, de Tessalônica a Atenas, de Corinto a Éfeso. O convertido não se contenta com uma terra prometida roubada dos cananeus, quer todo o planeta sob o signo de um Cristo de espada.

A epístola aos romanos o mostra nitidamente: “Não há poder que não o de Deus” (XIII, 1). Isso quanto à teoria. Segue-se na prática um elogio da submissão às autoridades romanas. Com base no princípio de que os detentores da força são antes de tudo ministros de Deus, Paulo fecha com eficácia: desobedecer a um militar, recusar um magistrado, resistir a um delegado de polícia, levantar-se contra um
procurador – Pôncio Pilatos, por exemplo... – são ultrajes a Deus. Vamos reescrever, então, as palavras de Cristo à moda paulina: dai a César o que é de César e a César o que é de Deus – para saldar todas as contas... Munidos desse viático ontológico, os cristãos logo começam a vender sua alma – que passa a ser inútil para praticar os evangelhos – ao poder temporal; instalam-se nas douraduras e na púrpura dos palácios; revestem suas igrejas de mármore e ouro; abençoam os exércitos; santificam as guerras expansionistas, as conquistas militares, as operações policiais; recolhem imposto; mandam a tropa contra os pobres que recriminam; acendem fogueiras – e isso desde Constantino, no século IV de sua era.

A história comprova: milhões de mortos, milhões, em todos os continentes, durante séculos, em nome de Deus, com a Bíblia em uma mão, o gládio na outra; a Inquisição, a tortura, o suplício; as Cruzadas, os massacres, as pilhagens, as violações, os enforcamentos, os extermínios; o tráfico de negros, a humilhação, a exploração, a servidão, o comércio de homens e mulheres e de crianças; os genocídios, os etnocídios dos conquistadores muito cristãos, certamente, mas também, recentemente, do clero ruandês ao lado dos exterminadores hutus; a parceria com todos os fascismos do século XX – Mussolini, Pétain, Franco, Hitler, Pinochet, Salazar, os coronéis da Grécia, os ditadores da América do Sul, etc. Milhões de mortos pelo amor ao próximo. 

O anti-semitismo cristão 

Para um cristão é difícil amar o próximo, sobretudo quando é judeu... Saul que se tornou Paulo empenha todo o seu ardor em desfazer o judaísmo – o mesmo ardor que ele tinha, antes do caminho de Damasco, ao perseguir os cristãos, dar uma mãozinha para espancá-los, até para fazê-los encontrar o além mais rapidamente. Para vender a seita à qual aderiu recentemente, ele deve fazer passar a ideia de que Jesus é o Messias anunciado pelo Velho Testamento e de que Cristo abole o judaísmo cumprindo-o. Como defensores de Javé não acreditam na lorota do Filho de Deus morto na cruz pela salvação da humanidade, tornam-se fundamentalmente adversários e, depois, logo inimigos. O Judeu errante, diz-se, sofreu essa maldição depois que o primeiro deles se recusou a dar de beber a Cristo a caminho do Gólgota. Por não ter ajudado o Crucificado, a maldição o atinge, Jesus não foi muito caridoso, e também e sobretudo a todos os seus, seus descendentes, seu povo. Tanto que a versão cristã da morte de Jesus supõe a responsabilidade dos judeus – não dos romanos... Pôncio Pilatos? Nem responsável, nem culpado. Paulo o afirma falando dos judeus que “mataram Jesus o senhor” (1 Ts II,15). Os evangelhos estão repletos de passagens abertamente anti-semitas – Goldhagen destaca um número considerável: cerca de quarenta em Marcos, oitenta em Mateus, cento e trinta em João, cento e quarenta nos Atos dos apóstolos... O próprio Jesus, o doce Jesus, ensina que os judeus têm “o diabo como pai” (Jo VIII, 44). Difícil amar o próximo nessas condições. Dos primeiros cristão que transformam os judeus em povo deicida ao reconhecimento tardio do Estado de Israel por João Paulo II no final de 1993, passando pela longa história de amor da Igreja católica, apostólica e romana com tudo o que há de anti-semitismo na história, inclusive, e sobretudo, os doze anos do nacional-socialismo alemão, não há o que duvidar. O auge desse ódio reside na colaboração ativa do Vaticano com o nazismo. Depois, coisa menos conhecida, do nazismo com o Vaticano. Pois Pio XII e Hitler compartilham um certo número de pontos de vista, especialmente a aversão pelos judeus em todas as suas formas.

O Vaticana ama Adolf Hiter

O casamento por amor entre a Igreja católica e o nazismo não deixa nenhuma dúvida: os exemplos são abundantes e nada insignificantes. A cumplicidade não se estabelece com silêncios aprovadores, não-ditos explícitos ou avaliações feitas a partir de hipóteses partidárias. Os fatos comprovam para quem aborda essa questão abordando a história: não foi um casamento pela razão, comandado pelo interesse da sobrevivência da Igreja, mas uma paixão comum partilhada por terem os mesmos inimigos irredutíveis, os judeus e os comunistas – assimilados quase sempre no mesmo balaio conceitual do judeo-bolchevismo.

Do nascimento do nacional-socialismo à infiltração dos criminosos de guerra do Terceiro Reich depois da queda do regime, ao silêncio da Igreja sobre essas questões desde sempre, e mesmo hoje – até a impossibilidade de consultar os arquivos sobre o tema no Vaticano –, o domínio de são Pedro, herdeiro de Cristo, foi também o de Adolf Hitler e dos seus, nazistas, fascistas franceses, colaboracionistas, vichystas, milicianos e outros criminosos de guerra.

Os fatos, então: a Igreja católica aprova o rearmamento da Alemanha, contrariando o tratado de Versalhes, certamente, mas também uma parte dos ensinamentos de Jesus, especialmente os que celebram a paz, a doçura, o amor ao próximo; a Igreja católica assina um acordo com Hitler desde a chegada do chanceler ao caso, em 1933; a Igreja católica silencia sobre o boicote aos comerciantes judeus, cala-se quando da proclamação das leis raciais em Nuremberg em 1935, mantém-se em silêncio por ocasião da Noite dos cristais em 1938; a Igreja católica fornece seu fichário de arquivos genealógicos aos nazistas, que sabem assim quem é cristão, portanto não-judeu; a Igreja católica alega em contrapartida o "segredo pastoral" para não comunicar o nome dos judeus convertidos à religião de Cristo ou casados com um ou uma deles; a Igreja católica sustenta, apoia o regime oustachi pró-nazista de Ante Palevic na Croácia; a Igreja católica dá sua absolvição ao regime colaboracionista de Vichy em 1940; a Igreja católica, embora sabendo da política de extermínio instaurada desde 1942, não a condena, nem privadamente nem publicamente, e nunca ordena a nenhum padre ou bispo que ataque o regime criminoso diante dos fiéis. Os exércitos aliados libertam a Europa, chegam a Berchtesgaden, descobrem Auschwitz. O que faz o Vaticano? Continua apoiando o regime desfeito: a Igreja católica, por intermédio da pessoa do cardeal Bertram, ordena uma missa de Réquiem em memória de Adolf Hitler; a Igreja católica silencia e não manifesta nenhuma reprovação por ocasião da descoberta das valas comuns, das câmaras de gás e dos campos de extermínio; a Igreja católica, em vez disso, faz para os nazistas sem Führer o que nunca fez por nenhum judeu ou vítima do nacional-socialismo: organiza um trâmite de exfiltração dos criminosos de guerra para fora da Europa; a Igreja católica utiliza o Vaticano, expede documentos carimbados com seus vistos, ativa uma rede de mosteiros europeus como esconderijos para garantir a segurança dos dignitários do Reich desmantelado; a Igreja católica nomeia em sua hierarquia pessoas que ocuparam funções importantes no regime hitleriano; a Igreja católica nunca se arrependerá de nada – uma vez que oficialmente ela não reconhece nada disso.

Se arrependimento houver algum dia, será preciso provavelmente esperar quatro séculos, tempo que foi necessário para que um papa reconhecesse o erro da Igreja quanto ao caso Galileu... Tanto que o dogma da infalibilidade papal proclamado no primeiro concílio do Vaticano em 1869-1870 – Pastor Aeternus – proíbe o questionamento da Igreja uma vez que o soberano pontífice, quando se exprime, quando toma uma decisão, não o faz como homem suscetível de se enganar, mas como representante de Deus na terra, constantemente inspirado pelo Espírito Santo – a tal graça de assistência. Deve-se concluir então por um Espírito Santo fundamentalmente nazista?

Enquanto a Igreja permanece em silêncio sobre a questão nazista durante e após a guerra, ela não deixa de tomar iniciativas contra os comunistas. Em matéria de marxismo, o Vaticano dá provas de um engajamento, de um militantismo, de um vigor que seria bom ter conhecido de sua parte para combater e desconsiderar o Reich nazista. Fiel à tradição da Igreja, por graça de Pio IX e Pio X, condena os direitos do homem como contrários aos ensinamentos da Igreja, Pio XII, o tal papa amigo do nacional-socialismo, excomunga em massa os comunistas do mundo todo em 1949. Afirma o conluio dos judeus e do bolchevismo como uma das razões de sua decisão.

Um lembrete: nenhum nacional-socialista importante, nenhum nazista de alto escalão ou que fizesse parte do Estado-maior do Reich foi excomungado, nenhum grupo foi excluído da Igreja por ter ensinado e praticado o racismo, o anti-semitismo, ou por ter feito funcionar câmaras de gás. Adolf Hitler não foi excomungado, seu livro Minha luta nunca foi colocado no Índex. Lembremos que depois de 1924, data de publicação desse livro, o tal Index Librorum Prohibitorum acrescentou à sua lista – ao lado de Pierre Larousse, culpado pelo Grand Dictionnaire Universel – Henri Bergson, André gide, Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre. Adolf Hitler nunca figurou nela.

Hitler ama o Vaticano

Um lugar-comum, que não resiste à mínima análise, menos ainda à leitura dos textos, considera Adolf Hitler um ateu pagão fascinado pelos cultos nórdicos, aficionado por um Wagner de cabo a rabo, por Walhalla e pelas Valquírias de peitos opulentos, um anticristo, a exata antinomia do cristianismo. Além da dificuldade de ser ateu e pagão – negar a existência de Deus ou dos deuses, depois, ao mesmo tempo, acreditar neles... –, é preciso ignorar todas as passagens da obra – Minha luta –, da obra política – ausência no Reich de perseguições à Igreja católica, apostólica e romana, ao contrário das testemunhas-de-jeová, por exemplo –, das confidências particulares do Führer – as conversas publicadas com Albert Speer –, em que Adolf Hitler diz sem ambiguidade e de maneira constante tudo o que pensa de bom do cristianismo.

É decisão de um Führer ateu mandar inscrever no cinturão dos combatentes das tropas do Reich: Gott mit uns? Sabe-se que essa frase procede das escrituras? Especialmente do Deuteronômio, um dos livros da Torah, no qual se pode ler explicitamente: “Deus marcha conosco” (Dt XX, 4), frase extraída dos discursos que Javé dirige aos judeus que partem para combater seus inimigos, os egípcios, aos quais Deus promete um extermínio total (Dt XX, 13).

É decisão de um Führer ateu obrigar todas as crianças da escola pública alemã a começar o dia no Reich nacional-socialista pela recitação de uma prece a Jesus? Não a Deus, o que poderia fazer de Hitler um deísta, mas a Jesus, o que o define explicitamente como cristão. O mesmo Führer pretensamente ateu pede a Goering e a Goebbels, na presença de Albert Speer que relata a conversa, que permaneçam no seio da Igreja católica como ele o fará até
seu último dia. 

As compatibilidades cristianismo-nazismo

As relações de bom entendimento entre Hitler e Pio XII existem bem além de uma cumplicidade pessoal. As duas doutrinas compartilham vários pontos de convergência. A infalibilidade do papa que, lembremos, é também chefe de Estado não pode desagradar a um Führer por sua vez persuadido também da sua. A possibilidade de construir um Império, uma Civilização, uma Cultura com um guia supremo investido de todos os poderes – como Constantino e um certo número de imperadores cristãos a seguir –, isso fascina Adolf Hitler quando escreve seu livro. A erradicação de tudo o que pertence ao paganismo pelos cristãos? As destruições de altares e templos? As queimas de livros – Paulo exorta a isso, lembremos...? As perseguições de opositores à nova fé? Coisas excelentes, Hitler conclui. O Führer aprecia o devir teocrático do cristianismo: a “intolerância fanática” que cria a “fé apodíctica” – segundo suas próprias palavras; a capacidade da Igreja de não renunciar a nada, mesmo e sobretudo diante da ciência quando esta contradiz algumas de suas posições e ataca alguns de seus dogmas; a plasticidade da Igreja para a qual ele prevê um futuro bem além do que se pode imaginar; a permanência da instituição venerável, apesar de um ou outro comportamento deplorável de pessoas da Igreja que não obstrui o movimento geral. Por tudo isso, Adolf Hitler convida a “aprender lições da Igreja católica”. Qual é o “verdadeiro cristianismo” de que Hitler fala em Mein Kampf? O do “grande fundados da nova doutrina”, Jesus, o mesmo para quem as crianças rezam nas escola do Reich. Mas que Jesus? Não o da outra face, não, mas o colérico que expulsa a chicotadas os mercadores do Templo. Hitler faz referência explicitamente a essa passagem de João em sua demonstração. E depois, para lembrar, esse açoite crístico serve para desalojar infiéis, não-cristão, gente que faz comércio e tem agências de câmbio, enfim, judeus, palavra-chave dessa cumplicidade do Reich e do Vaticano. O evangelho de João (II, 14) não proíbe a leitura filo-cristã e anti-semita de Hitler, ou melhor: torna-a possível... Ainda mais quando se convocam as passagens que consagram os judeus à geena e de que o Novo Testamento está repleto. Os judeus, povo deicida, eis a chave dessa parceria funesta: eles se servem da religião para negociar, diz ele; são os adversários de toda a humanidade, acrescenta; criam o bolchevismo, esclarece. Cada um que tira suas conclusões. Ele, Hitler, dá sua palavra final: “as ideias e as instituições religiosas de seu povo devem permanecer invioláveis para o chefe político”. As câmaras de gás podem portanto acender-se na fogueira de são João.

Guerras, fascismos e outras paixões

A parceria do cristianismo com o nazismo não é acidente da história, um erro de percurso lamentável e isolado, mas o cumprimento de uma lógica de dois mil anos de idade. Desde Paulo de Tarso que justifica o gládio e a espada para impor a seita confidencial como uma religião que contamina o Império, certamente, mas também todo o planeta, até a justificação da dissuasão nuclear pelo Vaticano do século XX, a linha persiste. Não matarás... a não ser de tempos em tempos – quando a Igreja mandar. Agostinho, santo de profissão, empenha todo o seu talento para justificar o pior na Igreja: a escravidão, a guerra, a pena de morte, etc. Bem-aventurados os doces? Felizes os pacíficos? Tal como Hitler, Agostinho não gosta desse lado do cristianismo, muito mole, não suficientemente viril, muito pouco guerreiro, ao qual falta sangue derramado – a face feminina da religião. Ele dá à Igreja os conceitos que lhe faltam para justificar as expedições punitivas, os massacres. Os judeus agem assim por sua terra, numa geografia limitada, os cristãos inspiram-se neles no globo todo, pois a conversão do mundo é seu objetivo. O povo eleito gera catástrofes primeiro locais; a cristandade universal cria de fato violências universais. Com ela, a totalidade dos continentes torna-se o campo de batalha.

Santificado pela Igreja, o bispo de Hipona justifica numa carta a perseguição justa. Fórmula seleta! Ele a opõe à perseguição injusta. O que distingue o bom do mau cadáver? O esfolado defensável do esfolado proibido? Toda perseguição que vem da Igreja é justa, pois é feita por amor; a que tem a Igreja como alvo é indefensável, pois é inspirada pela crueldade... Apreciemos a retórica e o talento sofista de Agostinho cujo Jesus deve também manejar o açoite e não o receber da soldadesca romana. Daí a noção de guerra justa, também ele teorizada pelo mesmo Padre da Igreja, que decididamente nunca se deixa deter por uma brutalidade, um vício ou uma perversão.

Herdeiro da velha fábula pagã, grega no caso, o cristianismo recicla o ordálio: numa guerra, o vencedor é designado por Deus, o vencido também, portanto. Definindo no conflito os ganhadores e perdedores, Deus diz o verdadeiro e o falso, o bem e o mal, o legítimo e o ilegítimo. Pensamento mágico, pelo menos.

Jesus em Hiroxima

Jesus e seu açoite, Paulo e sua teoria do poder proveniente de Deus, Agostinho e sua guerra justa constituem um Pai, um Filho, um Espírito Santo de choque capazes de justificar todas as empreitadas realizadas em nome de Deus há dois milênios: as Cruzadas contra os sarracenos, a Inquisição contra os supostos hereges, as guerras ditas santas contra os infiéis – ah, são Bernardo de Clairvaux escrevendo numa carta: “A melhor solução é matá-los”, ou ainda: “a mote do pagão é uma glória para o cristão”... –, as conquistas etnocidas muito cristãs dos povos ditos primitivos, as guerras coloniais para evangelizar todos os continentes, os fascismos do século XX, inclusive, portanto, o nazismo, todos furiosamente desencadeados contra os judeus. Não é de se espantar, então, que em matéria de guerra pós-moderna o cristianismo oficial escolha a dissuasão nuclear, a defenda e a desculpe. João Paulo II aceita seu princípio em 11 de junho de 1982 utilizando um paralogismo extraordinário: a bomba atômica permite caminhar para a paz! O episcopado francês segue o passo e dá suas razões: trata-se de lutar contra “o caráter dominador e agressivo da ideologia marxista-leninista”. Minha nossa! Que legibilidade na decisão, que clareza nas posições! Como teríamos apreciado uma condenação tão nítida e franca do nazismo durante seus dozes anos de poder. Teríamos até nos contentado com semelhante asserção moral depois da libertação dos campos. Quando cai o muro de Berlim e a ameaça bolchevique parece afinal de menor atualidade, a Igreja católica mantém sua posição. No último Catecismo, o Vaticano invoca “sérias reservas morais” (artigo 2315) – apreciemos a lítotes... – mas não condena de modo nenhum. No mesmo opus, rubrica “não cometerás assassínio” – vivam a lógica e a coerência! –, os mesmos defendem e justificam a pena de morte (artigo 2266). Não é de espantar que no índex não se encontre nenhuma entrada Pena de morte, Pena capital, Punição. Em contrapartida, Eutanásia, Aborto, Suicídio, questões abordadas no mesmo capítulo, dispõem de uma referência digna desse nome.

Logicamente, portanto, a tripulação do Enola Gay parte com uma bomba atômica lançada sobre Hiroxima, como se sabe, em 6 de agosto de 1945. A explosão nuclear causa em alguns segundos a morte de mais de cem mil pessoas, mulheres, velhos, crianças, enfermos, inocentes cuja única culpa foi a de serem japoneses. Volta da tripulação à base:

o Deus dos cristãos protegeu de fato esses novos cruzados. Esclareçamos que o padre Georges Zabelka teve o cuidado de abençoar a tripulação antes de sua missão funesta! Três dias depois, outra bomba atômica atinge Nagasaki e faz oitenta mil vítimas. O vigário de Deus apareceu muito mais tarde no platô de Larzac onde encontrou Théodore Monod. Na época, ele fazia uma peregrinação a pé rumo a Belém.

Amor ao próximo

Os textos paulinos, úteis para legitimar a submissão à autoridade de fato, produzem efeitos que vão muito além da legitimação da guerra e da perseguição. Assim, no terreno da escravidão que o cristianismo não proíbe mais que os dois outros monoteísmos. Em seguida, a escravidão limitada aos butins das razias tribais amplia-se ao comércio puro e simples, à venda e à deportação das populações utilizadas como gado e animais de carga. Honra aos antigos: como são os primeiros no tempo, deve-se a eles a invenção de muitos malefícios, senão sua confirmação ou sua legitimação, entre eles a escravidão. O decálogo não prevê respeito particular ao próximo quando ele não é o semelhante, marcado na carne pela faca do rabino. O não-judeu não dispõe dos mesmos direitos que o membro da Aliança. De modo que, fora do Livro, o Outro poder se abordado como uma coisa, tratado como um objeto: o goy para o judeu, o politeísta, o animista para o cristão, o judeu, o cristão para o mulçumano, o ateu para todos, é claro.

O Gênese (IX, 25-27) defende a escravidão. Prontamente introduz-se o assunto na Torah... Compram-se seres humanos, eles fazem parte da casa, habitam sob o mesmo teto que judeus, são circuncidados, no entanto continuam sendo escravos. A maldição de Noé, completamente bêbado que, ao se desembriagar, fica sabendo que seu filho o surpreendeu nu durante o sono, estende-se a todo um povo – Canaã, mais uma vez. – destinado à escravidão. Em outros locais, inúmeras passagens codificam a prática. O Levítico, por exemplo, tem o cuidado de definir que um judeu evitará utilizar um dos seus como escravo (XXV, 39-55). Um contrato de aluguel, sim, que se encerra depois de seis anos e permite ao judeu doméstico recuperar a liberdade. Em contrapartida, um não-judeu pode permanecer na condição de servidão até a morte. O povo da Aliança foi escravo dos egípcios, depois retirado dessa condição por Javé que, então, faz dos judeus um povo livre, que pode submeter mas não tem que se submeter a outro poder que não o de Deus. Os direitos do povo eleito... Não há mudanças com o cristianismo que, também ele, justifica a escravidão. Lembre-se, todo o poder vem de Deus, tudo procede de sua vontade. Alguém está em servidão? Os caminhos do Senhor são impenetráveis, mas há uma razão que justifica o fato: o pecado original, de modo absoluto, mas igualmente uma responsabilidade pessoal. Agostinho, sempre ele, quer que o escravo sirva com um zelo que rejubile a Deus! Todo escravo o é para seu bem, ele o ignora, mas o plano de Deus não pode evitar que seja diferente: esse menor ontológico tem necessidade de se ver na posição de servidão para existir dignamente.

E depois, sofismo último, como os homens são iguais aos olhos de Deus, pouco importa que na terra haja diferenças, no fim das contas acessórias: homem ou mulher? Escravo ou proprietário? Rico ou pobre? Pouco importa, diz a Igreja – tomando posição sistematicamente na história pelos homens, ricos e proprietários... Cada um é o que Deus quis. Rebelar-se contra o estado de fato contraria o desígnio divino, insulta Deus. O bom escravo que desempenha seu papel de escravo – como o garçom de café sartriano – ganha seu paraíso (fictício) com sua submissão (real) na terra. A Cidade de Deus (19,21), eis verdadeiramente um grande livro!

De fato, o cristianismo não se priva: já no século VI o papa Gregório I impede o sacerdócio aos escravos! Antes dele, Constantino proíbe aos judeus tê-los em sua casa. Na Idade Média milhares deles trabalham para os domínios agrícolas do soberano pontífice. Os grandes mosteiros os empregam sem constrangimento. No século VIII, o de Saint-Germain des Prés, por exemplo, utiliza não menos 
de oito mil. Herdeiros nisso como no mais, os muçulmanos praticam a escravidão e o Corão não o proíbe. Muito pelo contrário, uma vez que ele legitima as razias, as capturas de guerra, os butins em outro, prata, mulheres, animais, homens. Deve-se além disso ao islã a invenção do comércio de escravos. No ano mil, o tráfico regular existe entre o Quênia e a China. O direito muçulmano proíbe a venda de muçulmanos, mas não a de outros crentes. Nove séculos antes do tráfico transatlântico, o tráfico transaariano inicia um mercado abominável. Estima-se que dois milhões de homens tenham sido deportados ao longo de mil e duzentos anos pelos fiéis de Alá o Misericordioso, o Grandiosíssimo, o Humaníssimo.

Uma observação: os três monoteísmos reprovam essencialmente a escravidão, pois judeus e muçulmanos a proíbem para os membros de sua própria comunidade e os cristãos, que detestam os judeus, proíbem-nos de dispor de criados domésticos escravos, depois não permitem que um deles entre nas ordens para servir à palavra de seu Deus. Para seus inimigos, a Torah, o Novo Testamento e o Corão justificam a escravidão, como marca de infâmia, portanto uma humilhação, um destino que cabe ao sub-homem que é sempre o reprovado que não reza ao mesmo Deus que eles.

Colonialismo, genocídio, etnocídio 

Sequência lógica da legitimação da escravidão, o colonialismo, a exportação de sua religião para os quatro cantos do mundo e, para fazê-lo, o uso da força, da coerção física, mental, espiritual, psíquica e, é claro, armada. Exportar a servidão, estendê-la a todos os continentes foi feito do cristianismo, depois do islã. O povo judeu, por sua vez, desejou estabelecer sua dominação apenas sobre um território, seu território, sem jamais visar outra coisa. O sionismo não é um expansionismo nem um internacionalismo, pelo contrário: o sonho realizado de Theodor Herzl supõe um nacionalismo, um movimento centrífugo, o desejo de uma sociedade fechada por si – e não o desejo de um império sobre o planeta todo, desejo de cristandade e de islã.

A Igreja católica, apostólica e romana é exímia na destruição de civilizações. Ela inventa o etnocídio. 1492 não marca apenas a descoberta do Novo Mundo, mas também a destruição de outros mundos. A Europa cristã devasta assim um número considerável de civilizações indo-americanas. O soldado desembarca das naus, acompanhado da escória da sociedade embarcada nas caravelas: condenados pela justiça, malfeitores, matadores de aluguel, mercenário. Seguem-se, a boa distância, depois de realizadas as limpezas étnicas consecutivas ao desembarque, os padres com procissões, crucifixos, cibórios, hóstias e altares portáteis muito úteis para pregar o amor ao próximo, o perdão dos pecados, a doçura das virtudes evangélicas e outros júbilos bíblicos – o pecado original, o ódio às mulheres, ao corpo e à sexualidade, a culpa. Enquanto isso, a cristandade oferece como presente de boas-vindas a sífilis e outras doenças transmitidas aos povos ditos selvagens.

A parceria da Igreja e do nazismo visava também o extermínio de um povo transformado para as necessidades da causa em povo deicida. Seis milhões de mortos. A isso devem-se acrescentar a cumplicidade na deportação e o assassínio de ciganos, de homossexuais, de comunistas, de franco-maçons, de gente de esquerda, de laicos, de resistentes antifascistas, de opositores ao nacional-socialismo, e outras pessoas culpadas de não serem muito cristãs.

O tropismo dos cristãos pelos extermínios em massa é antigo e perdura. Assim, recentemente o genocídio dos tutsis pelos hutus em Ruanda, apoiado, defendido, coberto pela instituição católica local e pelo próprio soberano pontífice, muito mais pronto a se manifestar para criminosos de guerra genocidas padres, religiosos ou engajados na comunidade católica escapem ao pelotão de execução do que a oferecer uma única palavra de compaixão à comunidade tutsi.

Pois em Ruanda, país de grande maioria cristã, a Igreja praticou antes do genocídio a discriminação racial para o ingresso no seminário, a formação, a ordenação ou o avanço na hierarquia eclesiástica. Durante o genocídio, alguns membros do clero participaram ativamente: compra e encaminhamento de manchetes por membros da instituição católica, localização de vítimas, participação ativa em atos de barbárie – encerramento numa igreja, incêndio desta, eliminação de vestígios com buldôzer –, denúncia, mobilização por ocasião das pregações, divulgação do discurso racial.

Depois dos massacres, a Igreja católica persiste: utilização dos conventos para ocultar da justiça alguns culpados cristãos, ativação dessas redes para permitir a partida de determinados criminosos para os países europeus, fornecimento de passagens de avião para a Europa graças a uma associação humanitária cristã – Caritas internationalis, caridade bem organizada, etc. –, reciclagem dos padres culpados em paróquias de interior belgas e francesas, cobertura de bispos implicados, recurso a posições negacionistas – há uma recusa em utilizar o termo genocídio, preferindo-se falar em guerra fratricida, etc.

Em silêncio sobre os preparativos, em silêncio durante os massacres – perto de um milhão de mortos em três meses (entre abril e junho de 1994...) –, em silêncio depois da descoberta da dimensão do desastre – efetuado com a bênção de François Miterrand –, João Paulo II sai de seu mutismo para escrever uma carta ao presidente da república de Ruanda em 23 de abril de 1998. Seu conteúdo? Ele deplora? Tem compaixão? Arrependimento? Lamenta? Responsabiliza seu clero? Retira-lhe sua solidariedade? Não, de modo nenhum: pede que se adie a pena de morte dos genocidas hutus. Nunca teve uma palavra em favor das vítimas.

Recalcamento e pulsões de morte

O fascínio dos três monoteísmos pela pulsão de morte se explica: como é possível evitar o domínio da pulsão de morte depois de ter matado a tal ponto tudo o que provém em si mesmo e em toda parte da pulsão de vida? O medo da morte, o temor do nada, a sideração diante do vazio que segue o traspasse, geram fábulas consoladoras, ficções que permitem que a negação disponha de plenos poderes. O real não existe, a ficção, em contrapartida, sim. Esse mundo falso que ajuda a viver aqui e agora em nome de um mundo de pacotilha induz a negação, os desprezo ou ódio deste mundo.

Daí tantas ocasiões de ver esse ódio atuar: com o corpo, os desejos, as paixões, as pulsões, com a carne, as mulheres, o amor, o sexo, com a vida sob todas as formas, com a matéria, com o que aumenta a presença no mundo, ou seja, a razão, a inteligência, os livros, a ciência e a cultura. Esse recalcamento de tudo o que vive induz a celebração de tudo o que morre, do sangue, da guerra, do que mata – dos que matam. Quando se pode escolher nos três livros excertos que permitem creditar à pulsão de vida uma força máxima, a religião quer a pulsão de morte sob todas as formas. O recalcamento do vivo produz o amor à morte. De maneira geral, todo desprezo pelas mulheres – às quais preferem-se as virgens, as mães e as esposas – é acompanhado de um culto à morte.

As civilizações se constituem com a pulsão de morte. O sangue sacrificial, o bode expiatório, a fundação da sociedade com um assassínio ritual, estas são sinistras invariantes sociais. O extermínio judaico dos cananeus, a crucificação cristã do Messias, o jihad muçulmano do Profeta fazem correr o sangue que abençoa e santifica a causa monoteísta. Irrigação primitiva, mágica, degola da vítima propiciatória, no caso homens, mulheres e crianças. O primitivo subsiste no pós-moderno, o animal persiste no homem, a besta permanece no homo sapiens.

Michel Onfray
Tradução Monica Stahel


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