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Índio nietzchiano


Costumo ir muitas vezes à aldeia dos meus parentes Guarani localizada em Parelheiros, em São Paulo. Lá vivi muitos momentos de alegria, festas, de cerimônias. O povo Guarani é alegre, esportivo, feliz, apesar de viver apertado em apenas vinte e cinco alqueires de terra demarcada. Lá eu vivi um momento bastante engraçado, num dia 25 de janeiro, depois da cerimônia do Mongaraí.

Depois de passar a noite toda em vigília, dançando, cantando, pintando e ouvindo as vozes dos deuses, que se manifestam por intermédio do pajé que batizava as crianças e confirmava os adultos, nos pusemos a conversar. Estavam presentes Karaí, Mirim, Ailton Krenak, Jekupé, Olívio Tupã, Tiramãe e outras tantas pessoas índias e não índias. Trocamos informações sobre o encaminhamento da questão indígena em nível nacional. A manhã transcorreu de forma amena, sem nenhuma novidade.

Na parte da tarde, depois de muitas pessoas já terem ido embora, por volta das quatro horas, percebemos uma estranha movimentação numa das casas. Pouco depois, um dos responsáveis pela “santa” bagunça se dirigiu a nós para comunicar que em sua casa se encontrava um grupo de “crentes” que queriam pregar. No início não houve nenhuma reação, pois o grupo permanecia somente numa casa. Karaí Mirim não gostou da ideia e resolveu mandar a turma de “irmãos” se retirar, pois não havia sido autorizada pela comunidade a entrar na área. O mensageiro foi à casa onde se encontravam e noticiou ao pastor a decisão do líder. Este, por sua vez, resolveu descer e conversar conosco na tentativa de nos convencer a deixá-los permanecer na área.

Chegando ao local onde nos encontrávamos, o pastor começou a argumentar em favor próprio usando o discurso religioso. Empregou, de maneira infeliz, várias palavras que tornaram o nosso grupo arredio ao seu argumento. Jekupé (Pepe) assumiu as dores do grupo e passou a defender a cultura guarani. Enquanto isso, o restante de nosso grupo ameaçava o pastor com arco e flecha. Todos os jovens se juntaram a nós e armaram-se. Mas não passou disso, pois foi aí que aconteceu o inusitado. O Olívio, um Guarani do Sul do país, que cursa filosofia na USP, passou a argumentar com o pastor. O diálogo foi mais ou menos assim:

OLÍVIO: Você não tem o direito de vir até aqui para pregar em nome de Deus que já está morto. Aqui nós seguimos um Deus vivo que nos oferece a vida.

PASTOR: É mentira. Vocês são ignorantes. Nós temos a salvação. Nosso Deus é capaz de dar a salvação para vocês. Por isso estamos aqui, para pregar a verdadeira porta que deve ser aberta para a salvação.

OLÍVIO: Felizmente não precisamos acreditar nisso que você chama de salvação. Bem se vê que você entende nada sobre o que prega. Você precisa ler mais. Precisa fazer filosofia. Há uma multidão de pensadores contrários a tudo isso que você diz aí. Tudo isso é bobagem. Nietzsche já comentou que esse Deus que você prega está morto e foram vocês que o mataram. Portanto não venha pregar coisas velhas pra nós. Vá embora daqui, que é a melhor atitude que você pode tomar.

Achei muito interessante a coragem do jovem filósofo em enfrentar argumentos religiosos com outros tão racionais. Acredito que Olívio venceu a parada mais pela ira santa que o assolou na defesa da cultura guarani do que pelas ideias do velho Nietzsche. De qualquer maneira, o pastor nunca mais voltou à aldeia Morro da Saudade para importunar a comunidade. Graças, talvez, à força da palavra do franzino guarani de nome Olívio.


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